Acabou-se a blogonovela (para alívio de uma grande parte da pequena parte da humanidade que frequenta – ou frequentava – o Desinfeliz).
Para além dos motivos que referi a anteceder o primeiro episódio, esta história interessa-me desde logo porque faz parte da História, que é uma coisa que me interessa. Depois porque se enquadra num período histórico que me interessa especialmente. Vejo agora que isso tem a ver com o período em si, certamente, mas também, e não pouco, com a circunstância de eu ter crescido na época em que cresci. Quando eu era miúdo, os filmes de guerra eram um dos géneros mais abundantes, tanto nos cinemas como na televisão, e uma grande parte (a minha preferida) tinha como cenário a II Guerra Mundial. Havia os bonequinhos e os aviões da Airfix, claro, que a maior parte dos miúdos tentava coleccionar, até porque não havia assim tanta alternativa. A ficção científica andava muito pelo papel mas muito pouco pelos écrans e menos ainda nas duas lojas de brinquedos do país. O resto (para a canalha) era westerns, tarzans, músicas no coração, brancas de neve, chitty chitty bang bangs, herbies, louis de funés e ponto.
No caso concreto da minha casa, havia também uma quantidade enorme de livros sobre muitas coisas, uma das quais a II Guerra Mundial. À medida que me fui interessando pelo assunto, só tinha que ir ao escritório ou ao corredor, subir a um banquito, estender a pata e sacar mais um. Era fácil e isso ajuda muito, especialmente quando se trata de gente preguiçosa como eu. À medida que me fui interessando ainda mais e me fui habituando a ler em inglês, as possibilidades de escolha aumentaram exponencialmente (aliás, o processo foi biunívoco; um dos mais subestimados efeitos secundários da ascensão e queda de Hitler foi o melhoramento do meu inglês).
Não incluo nenhum desses livros na bibliografia porque a maior parte não deve ser fácil de encontrar nas livrarias e porque não me apeteceria nada emprestá-los, caso houvesse alguém interessado – o que, felizmente, não acontecerá. Aliás, nem incluo bibliografia propriamente dita. Só linkaria, que foi o que me deu mais jeito na produção da blogonovela. Claro que há um livro que recomendo, como toda a gente, a quem se queira começar a interessar: The Rise and Fall of the Third Reich, de William L. Shirer (creio que em português é tal qual, Ascensão e Queda do Terceiro Reich). O exemplar que era do meu pai e que eu herdei já se está a desintegrar, por isso mesmo que quisesse não o podia emprestar a ninguém...
Quanto à linkaria, incluí a wikipedia por duas razões, que acabam por se resumir numa só: porque a utilizei e porque acho que, para determinados assuntos sobre os quais já se parte razoavelmente informado, a versão inglesa é bastante fiável (se assim não fosse, não a teria utilizado, penso eu de que).
Medindo o sucesso da blogonovela pelo feedback, fiquei a saber que o Desinfeliz tem um leitor incondicional – o que, para mim, é imenso. Obrigado, mike. Aos restantes peço desculpa pela monotemática destes dias mas, como qualquer futebolista diria, a blogosfera é assim mesmo.
Segue-se um breve post mortem, ou uma ligeiríssima sessão de metablogonovela, como lhe queiramos chamar.
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É curioso verificar como o princípio da liderança, o Führerprinzip, o “eu só faço o que mandam”, por um lado serve para justificar tudo, tornando-se sinónimo de “eu faço tudo o que me mandam”, como também admite as suas excepções: quando Himmler vê que a vitória aliada é inevitável e ordena que se páre com a matança, Eichmann avalia a ordem, considera que ela não faz sentido e, sejam quais foram as consequências, recusa-se a cumpri-la; quando Hitler decreta que ninguém está acima das trincheiras, Eichmann faz-se de novas e continua no gabinete, sempre a providenciar para que a matança seja o mais eficaz possível.
É o mesmo zelo burocrático que todos conhecemos no nosso pacífico e inócuo dia-a-dia: nada é suficientemente arrevezado para ser impossível, nada é suficientemente simples para ser possível, nada na realidade se faz, para o bem ou para o mal, se o burocrata não estiver para aí virado.
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Em Fevereiro de 2005 a Mossad reconheceu oficialmente o seu “envolvimento” na captura/rapto de Eichmann, em resposta a um artigo publicado no jornal israelita Ma'ariv.
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A questão crítica da vida, julgamento e morte de Eichmann, a mais debatida internacionalmente logo após a sua captura e especialmente a propósito da sua execução, é a do seu grau de responsabilidade na implementação do Holocausto.
Alguns argumentam que Eichmann sabia exactamente o que estava a fazer, enquanto outros afirmam que ele foi julgado injustamente e que só estava a cumprir o seu dever como soldado. Rudolph, o filho de Eichmann, condenou as acções do pai e disse que não guardava ressentimento a Israel pela sua execução. O próprio Eichmann tinha declarado que se juntou às SS não por concordar ou não com os seus propósitos, mas porque precisava de fazer uma carreira.
Uma terceira perspectiva de análise veio de Hannah Arendt, uma judia que fugiu da Alemanha antes da subida de Hitler ao poder, e que fez a cobertura do julgamento de Eichmann para o The New Yorker. Em “Eichmann em Jerusalém”, um livro que reúne o material dessa cobertura, Arendt conclui que, além do desejo de progredir nessa carreira, Eichmann não mostrava traços de uma personalidade anti-semítica ou quaisquer desvios psicológicos ou de carácter. Chama-lhe a encarnação da “Banalidade do Mal”, na medida em que no seu julgamento aparentou ter uma personalidade normal e comum, não manifestando culpa nem ódio. Sugere que isso descredibiliza a ideia de que os criminosos nazis eram manifestamente psicopatas e diferentes das pessoas normais.
Stanley Milgram, que interpretou o trabalho de Arendt como prova de que mesmo as pessoas mais normais podem cometer crimes horrendos se se encontrarem nas situações propícias e se lhes forem dados os incentivos adequados, escreveu: “Tenho de concluir que a concepção de Arendt da banalidade do mal se aproxima mais da verdade do que poderíamos imaginar”. Arendt, no entanto, não sugere que Eichmann era normal ou que qualquer pessoa que se encontrasse na sua posição tivesse agido como ele o fez. De acordo com o seu relato, Adolf Eichmann tinha abdicado da sua vontade de fazer escolhas morais, e consequentemente da sua autonomia. Eichmann alegava que se tinha limitado a cumprir ordens e que estava portanto a respeitar os deveres de um “burocrata”. Isso leva Arendt a defender que Eichmann tinha fundamentalmente esquecido as condições morais, a autonomia e a possibilidade de questionar ordens. (Obrigado ao l. rodrigues por me ter chamado a atenção para a existência e relevância da experiência de Milgram.)
Em “Becoming Eichmann”, David Cesarani (historiador britânico e também judeu) sustenta que Eichmann era na realidade extremamente anti-semita, e que esse sentimento foi uma importante motivação dos seus actos genocidas.
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Por alturas do julgamento de Eichmann, Primo Levi escreveu isto:
[E] um sonho pleno de horror ainda não deixou de me visitar, a intervalos por vezes mais curtos, ou por vezes mais longos. É um sonho dentro de um sonho, variado nos detalhes, único na substância. Estou sentado a uma mesa com a minha família, ou com amigos, ou a trabalhar, ou num campo verdejante; em resumo, num ambiente pacífico e relaxado, aparentemente sem tensão nem aflição; no entanto sinto uma angústia profunda e subtil, a nítida sensação de uma ameaça iminente. E de facto, quando o sonho se desenrola, lenta e brutalmente, de cada vez de uma maneira diferente, tudo colapsa e se desintegra à minha volta, a paisagem, as paredes, as pessoas, ao mesmo tempo que a angústia se torna mais intensa e mais definida. Agora tudo passou a ser um caos; estou sozinho no centro de um cinzento e barrento nada, e agora sei o que isto quer dizer, e também sei que sempre o soube; estou outra vez no Lager, e nada é verdade fora do Lager. Tudo o resto foi uma breve pausa, um engano dos sentidos, um sonho; a minha família, a natureza em flor, a minha casa. Agora esse sonho dentro do outro, esse sonho de paz, acabou, e no outro sonho, que continua, gélido, ressoa uma voz bem conhecida: uma única palavra, não imperiosa, mas breve e subjugada. É a ordem da alvorada, de Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e aguardada: levantem-se, "Wstawàch."
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Linkaria
http://en.wikipedia.org/wiki/Adolf_Eichmann
http://www.historyplace.com/worldwar2/biographies/eichmann.htm
http://www.auschwitz.dk/Eichmann.htm
http://www.jewishvirtuallibrary.org
http://www.stanleymilgram.com
http://en.wikipedia.org/wiki/Milgram_experiment
http://www.iep.utm.edu/a/arendt.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Hannah_Arendt
http://www.arlindo-correia.com/180105.html
http://www.mossad.gov.il/Eng/AboutUs.aspx
http://www.hitler.org/writings/Mein_Kampf
http://en.wikipedia.org/wiki/Primo_Levi
http://www.bostonreview.net/BR24.3/gambetta.html
"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália
30.5.08
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1 comment:
Que bela carreira fez esse Eichmann...
Mas esta blogonovela teve poucos episódios, que chatisse...
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