"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

28.2.07

Pérolas Vermelhas (IX)


Para hoje, seleccionei três pratos. Uma entrada ligeira, uma fortíssima pièce de résistance e uma saída comparativamente doce e airosa.

Para começar, temos Avô de Putin au naturel. Pois é. O avô do actual presidente russo, Vladimir Vladimirovitch Putin, foi chefe de cozinha numa das casas de Estaline. Segundo o neto, o Chef Putin nunca lhe revelou fosse o que fosse sobre esses episódios: "O meu avô mantinha um grande segredo a respeito da sua vida passada". O que é pena porque, antes de confeccionar as pantagruélicas jantaradas do Ti Zé, o Vovô Putin já tinha cozinhado para Lenine. E antes, ainda rapaz, tinha servido o próprio do Rasputine. Há que compreender que o segredo pode muito bem ter sido a alma da longevidade do homem, mas umas memórias deste Mestre dariam certamente umas centenas de páginas suculentas.

Agora, com os devidos avisos aos estômagos mais sensíveis, passamos ao prato principal, à base de carnes batidas e miolos fritos. A dada altura, o pequeno Iezhov supervisava os torturadores, que tinham um jargão próprio para o seu métier, do qual se pode destacar a "luta livre francesa" (frantsuskaya borba, no original), substantivo genérico para a modalidade ou processo de destruição de um ser humano inocente. Quando alguns destes rapazes foram por sua vez interrogados, uns anitos mais tarde, explicaram em detalhe como usavam o zhguti, o taco especial, e o dubenka, ou seja, o bom, velho e simples cacete, bem como as tradicionalíssimas privações do sono e os interrogatórios constantes, a que davam o nick de tapete rolante. A respeito destas sessões, Kaganovitch achava "muito difícil não ser cruel: é preciso ter em consideração que se tratava de Velhos Bolcheviques empedernidos; como poderiam testemunhar voluntariamente?". O sempiterno Molotov sublinha que "o Politburo estava cheio de gangsters". Salvo grandessíssimo erro da minha parte, o Molotov era um dos ingredientes do Politburo...


Para sobremesa, nada como uma apetitosa e calórica dacha. Estas casinhas, que nem sempre eram tão humildes ou rústicas como eu supunha, eram um item muito pretendido entre os potentados do regime (não sei porquê, a palavra dacha sempre me evocou na mente umas cabanitas simplórias e proletárias, mas havia de tudo, desde o antigo palacete recuperado à novíssima vivenda assinada por arquitecto certificado). Vichinski, por exemplo, sempre cobiçara a dacha de Leonid Serebriakov. No âmbito do julgamento de um outro fulano (Radek), Vichinski interrogou e acusou Serebriakov (vá-se lá saber de quê). Tendo o julgamento produzido os efeitos pretendidos, Vichinski exigiu a citada dacha para seu uso, conseguindo inclusivamente ser reembolsado pela sua antiga casa e receber um subsídio de 600.000 rublos para restaurar a 'nova'. Depois da morte do Ti Zé, a família Serebriakov conseguiu reaver metade das propriedades que lhes tinham sido confiscadas, mas os Vichinski conservaram a outra metade. Assim, em 2002, 60 anos depois de o pai ter sido fuzilado por ordem do vizinho, os Serebriakov passavam os seus fins-de-semana paredes-meias com os Vichinski.

De então para cá, não tenho mais notícias que sirvam de café ou de digestivo. À laia de ilustrações, o menú do dia é abrilhantado, não necessariamente por esta ordem, por Vichinski e Putin (o neto, que o avô não se encontra no google com facilidade).

27.2.07

Pérolas Vermelhas (VIII)

Tal como já se havia aqui mencionado muito en passant, o revisionismo histórico-fotográfico era uma das grandes especialidades da casa do Ti Zé. E sem photoshops a ajudar, tudo à unha.


Claro que os artistas mais consagrados estariam ao serviço do Pravda e de outras instituições, mas mesmo ao nível privado havia quem exercitasse os seus dotes de apagador de indesejáveis. Em casa de Anastas Mikoian, homem do núcleo duro que se aguentou até aos tempos de Khrushchev, habitava um jovem de nome Sergei Shaumian que ia sempre actualizando cuidadosamente os álbuns de fotografias da família, apagando todos os Inimigos à medida que iam sendo presos e executados.

Claro que o critério para definir os Inimigos era bastante abrangente. As pessoas eram presas, torturadas, deportadas ou, de preferência, mortas, não pelo que tinham feito, mas essencialmente pelo que poderiam fazer. Molotov explica: "O principal era que, no momento decisivo, não se podia confiar neles. Assinei a maior parte — na realidade todas — das listas de detenções. Debatíamos e tomávamos uma decisão. Havia sempre uma enorme pressa. Como seria possível entrar em todos os pormenores? Por vezes, eram pessoas inocentes. Obviamente, uma ou duas em cada dez foram detidas sem motivo, mas as restantes por boas razões" (num só dia, chegaram a ser aprovadas 3167 execuções). Estaline também não deixa grande lugar a dúvidas: "Um Inimigo do Povo não é só aquele que faz sabotagem, mas também aquele que duvida da justeza da linha do partido. E são muitos, e temos de liquidá-los". E Bukharine eleva o nível do discurso: "Há qualquer coisa de grande e ousado na ideia política de uma purga geral, (porque) fará nascer uma desconfiança perpétua (...). Deste modo, a liderança está a obter uma garantia plena para si mesma".


No seu livro A Casa do Cais, um tal de Trifonov relata como todas as manhãs o porteiro uniformizado da dita casa (um monstrengo à beira-rio, não muito longe do Kremlin, habitado por boa parte da nomenklatura, comissários do povo, Khrushchev incluído, e parentela de Estaline) comunicava aos moradores quem fora preso durante a noite. Para além do photoshop, ainda faltava o e-mail para tudo se fazer com mais comodidade.

Os bigodes do dia são de Mikoian e Molotov.

20.2.07

Pérolas Vermelhas (VII)



Ti Zé no seu melhor, em conversa com Chou En-lai, defendendo a tese de que os norte-coreanos poderiam continuar a lutar indefinidamente, de preferência sem apoio soviético e a expensas diplomáticas da China: "Eles não têm nada a perder, excepto homens". Poder de síntese absoluto .

16.2.07

E agora, au naturel

Ready, steady, go.

A melhor banda do mundo dá para tudo

Entre muitos outros pormenores maos, é pena o erro num dos melhores versos (que são do Allen Ginsberg, que é o tipo que se ouve sem ser o Strummer, by the way).

Once fate had a witness, and the years seemed like friends...

Pode não se gostar de ver, mas sabe bem ouvir. Apresentados de modo algo desinfeliz, ainda assim, cá vão eles: The Ghetto Princes of Gutter Poets.

Com boa música, tudo se faz

A maior banda do mundo, aqui só a servir de banda sonora a outro artista.

14.2.07

Pérolas Vermelhas (VI)


Tarde e más horas, o Ti Zé apercebeu-se da importância de ter A Bomba. A guerra estava nos finzinhos, já só faltava mesmo acabar de vez com os japoneses e repartir os despojos (repartir o estritamente indispensável...), e eis que Master Moustachov se apercebe, finalmente, de que a União Soviética tem de correr e bem para conseguir chegar à Bomba em tempo útil.

Vai de arranjar um nome de código a condizer com a importância e premência do projecto (Tarefa Número Um, nada que deixasse grande lugar a dúvidas), vai de nomear o camarada Béria para dirigir o projecto e vai de dar à coisa uma escala russa: qualquer coisa entre 330.000 a 460.000 pessoas, entre as quais 10.000 cientistas e outros técnicos, entre os quais avultava o físico Igor Kurtchatov (Nobel das Barbas, no mínimo).


Béria controlava esta maltósia nas charachkis, umas prisões especialmente concebidas para especialistas técnicos, que Soljenitsine descreve em O Primeiro Círculo. Quando algum dos envolvidos sugeria que talvez pudesse trabalhar melhor em liberdade, Béria, a quem não faltava o sentido de humor, contrapunha: "Não duvido, mas seria perigoso. O trânsito nas ruas é uma loucura, e podia ser atropelado".

Estaline, a quem a ciência aborrecia mas que ainda não estava completamente gagá e não perdia de vista o lado prático das coisas, acreditava num equilíbrio entre ameaças e mimos para pôr os cientistas a render: "Deixem-nos em paz. Podemos sempre fuzilá-los mais tarde".

13.2.07

Pérolas Vermelhas (V)


Hoje em destaque temos o camarada Lazar Kaganovitch, a.k.a. Lazar de Ferro, o ferroviário-mor do imenso país do sovietes. O responsável pela CP da CCCP.

Em parceria com um sujeito chamado Leonid Utesov, escreveu um manual intitulado Como Organizar Conjuntos de Canto e Dança e Orquestras de Jazz nos Caminhos-de-Ferro. A páginas tantas, o manual decretava a necessidade de constituir, implementar e manter em acção uma banda de dzhaz em cada estação de comboios soviética.

Há que reconhecer que sempre seria melhor do que os Mários Matas dos corredores do metro ou que os ceguinhos do acordeão, não desfazendo.

Humor lá de baixo

Peço desculpa a todos e cada um dos desinfelizes clientes, pois o que se segue é na realidade um forward que provavelmente já toda a gente terá visto. Só que eu não, e achei piada. Para não correr riscos desnecessários resolvi fugir das traduções e deixar no original, introduzindo apenas uma ligeiríssima correcção no nome da companhia aérea, que vem referida como Quantas. Deve ser o resultado da passagem do mail pela Reckitt...


According to the story, after every Qantas Airlines flight the pilots complete a 'gripe sheet' report, which conveys to the ground crew engineers any mechanical problems on the aircraft during the flight. The engineer reads the form, corrects the problem, and then writes details of action taken on the lower section of the form for the pilot to review before the next flight. It is clear from the examples below that ground crew engineers have a keen sense of humor - these are supposedly real extracts from gripe forms completed by pilots with the solution responses by the engineers. Incidentally, Qantas has the best safety record of all the world's major airlines.

(1 = The problem logged by the pilot.) (2 = The solution and action taken by the mechanics.)
1) Left inside main tire almost needs replacement.
2) Almost replaced left inside main tire.
1) Something loose in cockpit.
2) Something tightened in cockpit.
1) Dead bugs on windshield.
2) Live bugs on back-order.
1) Evidence of leak on right main landing gear.
2) Evidence removed.
1) DME volume unbelievably loud.
2) DME volume set to more believable level.
1) IFF inoperative.
2) IFF always inoperative in OFF mode.
1) Suspected crack in windshield.
2) Suspect you're right.
1) Number 3 engine missing.
2) Engine found on right wing after brief search.
1) Aircraft handles funny.
2) Aircraft warned to straighten up, fly right, and be serious.
1) Target radar hums.
2) Reprogrammed target radar with lyrics.

12.2.07

É a vida

O que se passou nestes dois últimos dias foi apenas um fim-de-semana. O que se passou na Póvoa não foi o fim do mundo e o que se passou no referendo não foi o fim da vida.

A magia da Taça de Portugal mantém-se intacta, e isso é sempre bonito de se constatar (o próprio item que desaparece perante a multidão, no passe de mágica, tem de ter a humildade e o fair-play de reconhecer que a multidão quer ver é o desaparecimento, e não o item em si - seja ele um avião, uma partenaire semi-descascada ou um Sport Lisboa e Benfica). Aliás, tomando em conta os equipamentos, o escalão em que milita, a solidez com que defende, a qualidade do guarda-redes e o veneno com que ataca, com uma linha avançada 100% constituída por internacionais, ninguém me tira da cabeça que aquilo era a Juventus, e não o Varzim. Acresce a isto, como atenuante à derrota do Benfica, que o mesmo já tinha sucedido a outros grandes do futebol português, como o Olhanense e não só. Mais: não tendo o Benfica, manifestamente, equipa para três frentes, que se lixe a Taça, começando pela de Portugal.

Quanto ao referendo, ao contrário do que as turminhas do não defendem sempre que se fala nesta questão, não era a vida que estava em causa. Nem a dos embriões a que a pergunta se referia, nem a dos fetos que se lhes seguem no normal decurso de uma gestação saudável, nem a dos queriduchos e irresistíveis bebés fotografados ou filmados após meses de mimos e boa nutrição, nem sequer a Vida em geral. A questão era, muito simplesmente, o que fazer com as mulheres que por qualquer razão recorram (ou sejam suspeitas de recorrer) ao aborto. O fantástico e nunca antes visto número do 'Vota não para que depois sim', do 'Não votes sim porque senão', do 'Não, por acaso, assim, concretamente e tal e qual desta maneira, não pode ser, bastava ser um nadinha ao lado e já estávamos de acordo', esse número era de facto mirabolante mas... não resultou.

Uma vez mais, a tugolândia mostrou que não anda por aí no dia-a-dia a desperdiçar o seu bom senso, a sua capacidade de análise e o seu condão de fazer coisas adequadas às situações e susceptíveis de melhorar alguma coisa na sociedade. A tugolândia prefere manter o nonsense quotidiano e guardar essa sabedoria para os dias das eleições. Antes isso, é o que se me oferece dizer.

Claro que, no plano puramente pessoal, são duas derrotas para o Engenheiro Fernando Santos num só fim-de-semana. Mas é a vida. Nem mais, nem menos.

6.2.07

Pérolas Vermelhas (IV)


O cromo de hoje é tão difícil que o Google não me consegue arranjar nenhuma foto. Acudia pelo nome de Aleksandr Nikolaevich Poskrebichev. E acudia depressa, pois era o chefe de gabinete do Ti Zé. À falta de foto temos várias descrições de contemporâneos, em que a palavra simiesco surge com regularidade. Ainda assim, Poskrebichev era casado com uma belíssima polaca. Dizia ela, na reinação, que o marido era tão feio que só conseguia ir para a cama com ele às escuras. O próprio não era cego, nem tinha falta de espelhos em casa. E não se orgulhava menos da sua fealdade do que da lealdade ao Vozhd. Dizia que Estaline o escolhera precisamente pelo seu aspecto assustador.


Talvez para compensar o impacto visual negativo que provocava, Poskrevichev desempenhava alegremente o papel de bobo da corte. Estaline desafiava-o a beber um copo de vodka de um só trago, sem um golito de água que fosse para ajudar. Ou então a ver quanto tempo conseguia manter as mãos levantadas com um pedaço de papel a arder debaixo de cada unha. "Vejam! O Sacha consegue beber um copo de vodka sem sequer franzir o nariz!", deliciava-se Estaline. Em não se estando a matar uns aos outros, sabiam divertir-se, estes sovietes.

5.2.07

Pérolas Vermelhas (III)


Este cromo, que dava pelo nome de Iagoda, foi um dos primeiros responsáveis pelo NKVD, a secreta dos bolchies.

Quando caíu em desgraça (o terreno era particularmente escorregadio e não faltavam mãos amigas a empurrar, como as dos já referidos Béria e Iezhov), as suas residências foram devidamente vasculhadas. Eis uma parte do inventário das buscas aos dois apartamentos no centro de Moscovo e uma dacha:

3094 fotografias e 11 filmes pornográficos, 9 casacos de senhora estrangeiros, 4 casacos de pele de esquilo, 3 capas de pele de foca, 1 capa de astracã, 31 pares de sapatos de senhora, 91 boinas de senhora, 22 chapéus de senhora, 130 pares de meias de seda estrangeiras, 10 cintos de senhora, 13 malas de mão, 11 fatos de senhora, 57 blusas, 69 camisas de noite, 31 coletes de senhora, 70 pares de meias de seda nacionais, 4 xailes de seda, 1 colecção de cachimbos e boquilhas com motivos pornográficos, 1 pénis artificial de borracha, 2 balas etiquetadas "Zinoviev" e Kamenev".

O pequeno Iezhov deve ter achado estes dois últimos artigos de bom gosto, pois fez questão de ficar com eles e guardá-los na sua própria casa. Note-se que os nomes inscritos nas etiquetas não indicavam o destino das balas, e sim a sua proveniência.