"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

27.2.07

Pérolas Vermelhas (VIII)

Tal como já se havia aqui mencionado muito en passant, o revisionismo histórico-fotográfico era uma das grandes especialidades da casa do Ti Zé. E sem photoshops a ajudar, tudo à unha.


Claro que os artistas mais consagrados estariam ao serviço do Pravda e de outras instituições, mas mesmo ao nível privado havia quem exercitasse os seus dotes de apagador de indesejáveis. Em casa de Anastas Mikoian, homem do núcleo duro que se aguentou até aos tempos de Khrushchev, habitava um jovem de nome Sergei Shaumian que ia sempre actualizando cuidadosamente os álbuns de fotografias da família, apagando todos os Inimigos à medida que iam sendo presos e executados.

Claro que o critério para definir os Inimigos era bastante abrangente. As pessoas eram presas, torturadas, deportadas ou, de preferência, mortas, não pelo que tinham feito, mas essencialmente pelo que poderiam fazer. Molotov explica: "O principal era que, no momento decisivo, não se podia confiar neles. Assinei a maior parte — na realidade todas — das listas de detenções. Debatíamos e tomávamos uma decisão. Havia sempre uma enorme pressa. Como seria possível entrar em todos os pormenores? Por vezes, eram pessoas inocentes. Obviamente, uma ou duas em cada dez foram detidas sem motivo, mas as restantes por boas razões" (num só dia, chegaram a ser aprovadas 3167 execuções). Estaline também não deixa grande lugar a dúvidas: "Um Inimigo do Povo não é só aquele que faz sabotagem, mas também aquele que duvida da justeza da linha do partido. E são muitos, e temos de liquidá-los". E Bukharine eleva o nível do discurso: "Há qualquer coisa de grande e ousado na ideia política de uma purga geral, (porque) fará nascer uma desconfiança perpétua (...). Deste modo, a liderança está a obter uma garantia plena para si mesma".


No seu livro A Casa do Cais, um tal de Trifonov relata como todas as manhãs o porteiro uniformizado da dita casa (um monstrengo à beira-rio, não muito longe do Kremlin, habitado por boa parte da nomenklatura, comissários do povo, Khrushchev incluído, e parentela de Estaline) comunicava aos moradores quem fora preso durante a noite. Para além do photoshop, ainda faltava o e-mail para tudo se fazer com mais comodidade.

Os bigodes do dia são de Mikoian e Molotov.

4 comments:

Anonymous said...

Incorrigíveis, estes senhores do Kremlin que inspiram as Pérolas Vermelhas. Curiosamente o que me chamou a atenção para este texto foi o nome do jovem Shaumian que se dava ao trabalho de ir actualizando a lista. É que, em tempos que já lá vão, e em leituras passadas, me "cruzei" com uma Shaumian de apelido mas Tatiana de seu nome. Também russa, estudiosa e que devotou grande parte da sua vida ao estudo da questão Tibetana, outro assunto tratado com delicadeza como era apanágio de Estaline. Coincidência, ou talvez não. Uma questão que deixo por esclarecer pelo do "dono" do blog.

Anonymous said...

Yuri Valentinovich Trifonov... Rebusquei, rebusquei e encontrei entre os livros do meu pai, já que o nome não me era estranho, um velho livro, não a Casa do Cais, mas Another Life (edição em inglês, não sei se existe na nossa língua). Consta que passou as passinhas do Algarve (que deviam ter outro nome na década de 30 lá para os lados do território soviete), mas lá pelos anos 50 foi reabilitado. Another Life, para já, é um romance de escrita densa, mas deixa ver...

José, o Alfredo said...

Eu confesso que não me pus a pesquisar coisa nenhuma (nem todos temos tempo para tudo...). O mais parecido com o Trifonov que encontrei foi uma caixa de Trifene 200 (que, ficarás a saber se não o sabias já, não se limita a tratar lá daquelas cenas das gajas; consta que é do melhorzinho que se fabrica para a dor de cabeça, independentemente do sexo, idade, religião ou orientação partidária). Quanto às passinhas do Algarve lá do sítio, fiquei com a ideia de que a Abcázia era a estância balnear por excelência.

Anonymous said...

Pois então desconfio que alguma desta malta passou as passinhas da Abcázia...