"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

1.3.06

O Palimpsesto


Antes do mais, para que esta história tenha alguma possibilidade de algum dia vir a ser entendida por alguém, convém esclarecer que um palimpsesto não é o mesmo que uma epístola (apesar de alguns palimpsestos poderem, eventualmente, ter desempenhado, em dada altura, funções epistolares).

Para quem o não saiba já, convém também desmentir peremptoriamente os rumores que têm as epístolas como as mulheres dos apóstolos. Nada de mais errado. Primeiro, porque de um apóstolo digno desse nome o mínimo que se espera é que seja solteiro. Segundo, porque as epístolas não passam de cartas. Como tal, a lei impede-as de contrair matrimónio com quem ou com o que quer que seja. Esclarecida esta questão, por assim dizer paralela, retomemos o ponto (prévio) da definição do palimpsesto.

Indo ao latim, coisa que todos nós deveríamos fazer mais frequentemente, vemos que palimpsesto não é mais nem menos que raspado de novo. Não se pense, no entanto, que este substantivo se emprega correntemente, a propósito de tudo e de nada. Não será fácil, por exemplo, ouvir o termo na cozinha de um restaurante qualquer, aplicado àquele hamburguer resultante da raspagem das sobras dos da véspera, os quais, por sua vez, eram já fruto da raspagem das sobras dos bifes e dos bitoques da antevéspera, e que vai à mesa e à ementa sob a classificação de Bife Raspado au Madeira.......9,00. Não. Numa cozinha de restaurante poderemos ouvir muitas palavras curiosas. Algumas até com mais de três sílabas. Mas palimpsesto, não.

Correntemente, ou melhor, tão correntemente quanto o permite uma palavra destas, palimpsesto emprega-se, à falta de um sinónimo menos abstruso, para designar um manuscrito encontrado num pergaminho, por debaixo de um ou mais escritos posteriores. Não se julgue, porém, que esse manuscrito foi lá parar por acaso. Nada disso. É que, para além de não terem muito mais que fazer, os monges copistas da Idade Média gostavam particularmente de raspar fosse o que fosse que estivesse escrito num pergaminho para depois escreverem outra coisa qualquer por cima. Se, em vez de pergaminhos, os monges copistas tivessem computadores, seria o equivalente a deitarem os documentos antigos para o lixo a fim de criarem novos documentos. Este hábito dos monges terá nascido, provavelmente, da existência de dificuldades no fornecimento de disquetes. Perdão, de pergaminhos.

A dada altura, ter-se-á espalhado o boato de que os textos antigos eram muito mais interessantes que os novos, o que fez com que alguém se tenha dado ao infinito trabalho de fazer reaparecer os caracteres primitivos. Nascia assim o genuíno palimpsesto, que não é senão o tal texto que se descobre num pergaminho, por baixo de outro ou outros textos. As mais das vezes, evidentemente, os palimpsestos têm tanto ou tão pouco interesse como os textos que os cobriram, ou seja, nenhum. Mas alguns há que acabam por justificar a trabalheira que dão.

É um desses, trazido de novo à luz do dia em meados do século XIX, que está na origem desta história. Só que, entretanto, mãos criminosas, ou simplesmente inconscientes, o desviaram. Desde 1912 que nunca mais ninguém o viu. Do ponto de vista do leitor, isso foi o melhor que poderia ter acontecido, atendendo a que, sem ver o palimpsesto com os seus próprios olhos, este autor se recusa a dizer seja o que for sobre ele. A não ser que, segundo várias fontes, era muito bonito. Especialmente, e ainda segundo essas fontes, à luz das primeiras horas do dia.

1 comment:

L. Rodrigues said...

Olha se palimpsesto fosse uma forma verbal?
Eu palimpsesto..
tu palimpsestas..
...
etc...
...
ele palimpsestar-lhos-á.

Deixá-los lá ficar escondidos...

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