"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

31.3.06

Tuguíadas I, 53/55 (Bola) (bola) (e mais bola)


E que dizer da malta que ganhou
A Super Liga, ganha de antemão?
Coisa triste de ver, a quem marcou
As eras do triunfo lampião!
Mas este mundo muda e já mudou:
Começa a nóvel era do dragão...
Mas não se perde a fé no desafio,
Nem nesse grande mestre, Rui Rio.

São muitos já os anos que penamos:*
Da velha glória, o cheiro? Nem cheirá-la!
Coitadas das mãozinhas, que esfregamos:
"Será este ano, vamos conquistá-la!"
Alguns há, mas nos quais não nos contamos,
Que crêem numa espécie de cabala;
Existem os que choram que o Maniche,
De azul e branco, até já pontifique

E co'as cores que são as nacionais
Se faça um jogador bem diferente
Do que fora, se bem vos recordais,
Naquele tempo, ainda tão recente,
Em que chutava bolas p'rós pinhais;
Nesse tempo jogava parcamente,
Ao contrário daquilo que deseja
Este que ora vos diz "maldito seja!".

(...)

* Felizmente, este verso caducou entretanto. Eram muitos já os anos... Eram. Foram. E nem sequer foram tantos assim, comparados com alguns... Poesia da mais bela e pura.

29.3.06

Línguas moribundas


Não são só os pandas, os bacalhaus, os sapos ibéricos e os morcegos da Moldávia que correm perigo de extinção. Muitas línguas estão na mesma situação, ou pior. Pinker chama-lhes línguas moribundas (moribund languages, para ser mais preciso) e Michael Krauss calculava que fossem umas 3 mil em todo o mundo. Isto em 1994, o que deixa pressupor que umas quantas já lá vão.

Para quem estranhe a exorbitância do número, convém esclarecer que Pinker não vai em distinções entre línguas e dialectos. Ou melhor, reduz a diferença à seguinte fórmula: uma língua é um dialecto que dispõe de um exército e de uma marinha.

Krauss, linguista a quem o grande Pinker parece reconhecer autoridade na matéria, estimava nos tais idos de 94 que se encontravam nessa aflição: 150 línguas índias norte-americanas (80% das existentes); 40 no Alasca e na Sibéria (90% das existentes); 160 na América Central e do Sul (23%); 45 na Rússia (70%); 225 na Austrália (90%)... As tais 3000 correspondem a cerca de 50% das existentes em todo o mundo. Apenas umas 600 se podem considerar razoavelmente a salvo, graças a uma massa crítica mínima de falantes (parece que os mínimos olímpicos estão em 100 mil, mas mesmo esse valor não garante a sobrevivência, nem mesmo a curto prazo). Resumindo e baralhando, a ideia que fica é que 90% das línguas faladas no planeta (3600 a 5400) estão ameaçadas de extinção neste século.

Os sintomas são muito fáceis de detectar. Quem perpetua as línguas são as crianças que as aprendem. Quando um linguista esbarra numa língua que só é falada por adultos, esse linguista sabe que acaba de esbarrar numa língua condenada.

As causas, como se poderia supor, são diversas. As línguas desaparecem pela destruição dos habitats dos seus falantes, pelo genocídio, pela assimilação forçada, pela educação assimiladora (se é que é assimiladora que se diz), pela submersão demográfica e pelo bombardeamento mediático, que o nosso velho Krauss não hesita em qualificar de "cultural nerve gas".

A terapia, quando aplicável e desejável (o que não é sempre), passa pela produção de material pedagógico, literatura e televisão na língua enferma. A extinção pode ser prevenida ou mitigada se se preservarem as gramáticas, os léxicos, textos e gravações de discurso oral. O caso do Hebraico, em pleno século XX, mostra que, em havendo vontade, o uso continuado (o teimuso, diria eu) em contextos cerimoniais, conjugado com a preservação de documentos, pode ser suficiente para fazer ressuscitar uma língua.

Ninguém melhor que Ken Hale (outro linguista, citado por Pinker e re-citado e traduzido por José, o Alfredo) para acabar com a conversa, que já vai mais longa que a proverbial língua da sogra: a perda de uma língua é parte da perda mais geral que o mundo sofre, a perda da diversidade em todas as coisas.

28.3.06

Tuguíadas I, 49/52 (bebidas escocesas) (automóveis alemães) (e outras coisas à portuguesa)


Alguns inesperados, como a gente
Muito ilustre que faz diplomacia;
E não só o triste povo, que somente
Metade do alfabeto conhecia;
Gente fina, bastante sapiente,
Mas eis que não pratica o que sabia:
Bebem copos de uísque e não se deitam
Até que a luz do Sol e o dia espreitam;

Mamando alarvemente vomitavam,
E logo de seguida, já adivinham
Certamente, mais copos emborcavam,
Como se ainda a sede não continham.
E nesse estado era que guiavam
Os belos automóveis, que eles tinham:
O Mercedes e o Porsche, mais potente,
E os outros, fabricados no Oriente.

Neste assunto tão triste, malfadado,
Mal andarei se um coche não insisto,
Pois deste fim se têm mais finado
Que d'um outro, qualquer, de que há registo.
Oh povo que assim morre, desgraçado,
A quem não vai valer nem Jesus Cristo!
Oh povo que se extingue, qual bisonte,
Que se mata de modo brutamonte!

É pois no alcatrão que nos matamos,
E não em Moçambique, na refrega
De Angola, ou da Guiné, que bem lembramos;
Dessas terras no fim se fez entrega
Ao local habitante, que empregamos
Na construção civil, mas ninguém nega
Que doutra forma agora os explorais,
Os lá das terras de África natais.

(...)

24.3.06

A falta que as palavras fazem


Há quem não, mas eu gosto das palavras. E tenho um especial carinho pelas que não existem. Felizmente não sou o único. Não digo que há alguém que me compreende, porque não gosto de exagerar, mas digo que esse gosto pode dar nisto (tanto que pode que deu; não sei quem é o autor, cheguei lá via Pinker):

Sally Salter, she was a young teacher who taught,
And her friend, Charley Church, was a preacher who praught;
Though his enemies called him a screecher, who scraught.

His heart, when he saw her, kept sinking, and sunk;
And his eye, meeting hers, began winking, and wunk;
While she in her turn, fell to thinking, and thunk.

In secret he wanted to speak, and he spoke,
To seek with his lips what his heart long had soke,
So he managed to let the truth leak, and it loke.

The kiss he was dying to steal, then he stole;
At the feet where he wanted to kneel, then he knole;
And he said, "I feel better than ever I fole."

Noutro registo, mas sem mudar completamente de assunto: o The New Hacker's Dictionary vem preencher muitas lacunas na palavrada disponível, e nem todas serão para uso exclusivo da classe.

Há de tudo:

verbos, como depeditate (o equivalente a decapitar mas aplicado aos pés; utiliza-se, por exemplo, quando se corta a parte de baixo de qualquer coisa no acto de imprimir);

adjectivos, como barfulous (que se aplica a qualquer coisa que faça seja quem for barfar, ou seja vomitar), ambimoustrous (alguém que é capaz de operar um rato com ambas as mãos), bozotic (o que tem a qualidade do Bozo the Clown) ou pessimal (o oposto de optimal, obviamente);

e substantivos vários, como o fabuloso marketroid (que designa um membro do departamento de marketing de uma empresa).

23.3.06

O país do Professor Neca, pá


Como diz um amigo meu, há um fenómeno estranho naquilo a que convencionámos chamar Este País: o presidente é O Cavaco, o anterior era O Sampaio, antes foi O Soares, o primeiro-ministro é O Sócrates... e há O Professor Neca. Que raio de maneira de nos tratarmos uns aos outros.

Eu, tu, ele, nós, vós, eles, você, vocessemecê, vomecê, vocelência, sô dótor, chôtor, chôr engenheiro, chô professor, setor, sôr arquitecto, meu. Formas de chamamento é o que não falta. Mas se houvesse só uma ela seria certamente o pá. Pá páqui, pá páli, pá pácolá. Pá isto, pá aquilo, pá o outro. Qualquer coisa pá, pá qualquer coisa. Tchinápá. Se o Otelo, pá, do Shakespeare, pá, fosse o nosso, pá, onde se lê thou, pá, lia-se pá, pá. Este país, pá, é o país em que toda a gente é pá, pá.

Donde, cavemos todos.

22.3.06

Tuguíadas I, 46/48 (tuning) (street racing) (e outras estupidezes)


Nem ficará esquecida a maluqueira
Das mortes, nas estradas concorridas,
Com corridas velozes, à maneira
Daquelas que, nas pistas construídas
Para tal fim, se fazem; brincadeira
Que a tantos inocentes custa vidas!
Quando será que aquele que é prudente
Irá saber-se livre desta gente?

Ah! Heróis! Os que guiam bem bebidos
Lá vão, alegremente emborrachados,
Sem cuidarem sequer dos já temidos
Balões, que a bófia quer ver bem soprados,
E, sem verem que trazem os sentidos,
Na melhor das hipóteses, capados,
Pelos caminhos ziguezagueando
Os carros assim vão, cambaleando.

Coitados: não sabiam, não cuidavam,
Que, se naquele estado circulassem,
Como o sol era certo que acabavam
Estampados nos outros, que cruzassem,
Aqueles que, coitados, circulavam
Na boa, sem que nunca suspeitassem
Que iriam encontrar aquela malta,
Que juízo tem pouco, e que faz falta!

(...)

21.3.06

Dia de poesia


O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Isto são As amoras, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Bom Dia, como diria o Pacheco.

20.3.06

Eu quero as minhas verdadezinhas de volta!


Este sujeito, que dá pelo nome de Steven Pinker, ameaça deitar por terra uma quantidade de verdades feitas na minha cabeça. E porquê? Porque este sujeito Pinker escreveu um livro. Ou melhor, porque um amigo me emprestou um livro escrito por este sujeito Pinker. De facto, aos amigos e aos livros, há que saber escolhê-los e/ou mantê-los à distância. É uma gente tramada.

O dito livro intitula-se The Language Instinct e, desde sexta-feira, não tem feito outra coisa que não torpedear sistematicamente algumas daquelas verdades que nunca nos ocorreu questionar... Repararam como, espero que com alguma elegância e subtileza, a primeira pessoa do singular deu lugar à do plural? Isto sou eu a desculpar-me, airosamente, com o velho argumento do OK eu poderei ter sido um bocadinho estúpido mas não fomos todos?

Não. Há que encarar isto de frente. O facto é que, até anteontem por esta hora, eu andava por aí convencidinho de que os esquimós tinham uma carrada de palavras diferentes (100? 200? 432?) para designar diferentes géneros de neve. E vem este Pinker e que não. Que têm tantas, ou tão poucas, como os ingleses. Pior. É preciso um Pinker para eu perceber por que é que, na realidade, isso é totalmente indiferente, irrelevante, imaterial, inconclusivo... Não é por não ser verdade. Como tantos outros mitos ou lendas, urbanas ou não, como qualquer reles boato, há ali uma certa dose de veracidade, uma miscelânea de aparato e lógica da batata que não custa nada a engolir. Não sei quem disse que era verdade (a mim, pessoalmente, não foi nenhum esquimó... mas lá está outra das características do bom boato, a indeterminação da fonte), agora vem o Pinker e diz que não é verdade. Mas o Pinker acrescenta algo de muito mais interessante: é que, mesmo que fosse verdade, o ponto que parecia subjacente é que está em causa. E o ponto é a velha questão do cultural versus inato, do aprendido versus instintivo.

Mais um excelente exemplo de Pinker: se os miúdos são tão dados a imitar os pais como se diz e como geralmente se aceita, porque é que não ficam sentadinhos e quietinhos nos lugares deles num avião, ou num restaurante, que é o que faz a esmagadora maioria dos paizinhos? Decididamente, não há como não dar alguma atenção a este Pinker.

17.3.06

Tuguíadas I, 44/45 (Sem gripe das aves) (mas com pneumonia atípica) (se alguém se ia lembrar de uma coisa destas)


Falaremos também da inflacção
Que às coisas do consumo se encarece,
Onde outrora pagavas um tostão
Se o mesmo queres comprar, então esquece,
Pois largarás agora um patacão,
E a massa, dessa forma, nunca cresce.
Quem já se lembra quanto lhe custava
Aquela coisa toda, que comprava?

E daquel'outro caso, da pneumonia,
Atípica chamada, que mazela!
Que a gente vai matando, a cada dia,
Sem que a gente consiga escapar dela;
Se visitaste a China, mau Maria!
Mais valia ficar na Bobadela!
E os outros, que a Toronto dirigiam
Seus destinos, igual destino viam.

(...)

Hoje também é dia de parabéns


O primeiro Porsche foi apresentado ao mundo a 17 de Março. Foi em 1949, levou o número 356 e nasceu de um trabalho conjunto entre pai e filho, Ferdinand e Ferry. A Pilar, minha filha, também faz anos hoje e por isso vai levar uma pequena parte dos beijinhos que merece. Mas isso é (quase só) cá connosco.

16.3.06

Faz hoje 45 anos


O Jaguar E. E-type, para os mais picuinhas. O Jáguáré, como nós, miúdos, lhe chamávamos quando víamos algum, o que era raro. Ai ai...

15.3.06

Brutos!


Faz hoje uma carrada de anos que Júlio César sucumbiu às facadas de 60 conspiradores, encabeçados por Marco Júnio, o Brutus, e por Gaio Cássio, o Longinus.

Note-se que a cesárea carreira de Gaio Júlio começou no Partido Popular, à época liderado por um tal de Pompeu. Nunca subestimar o Partido Popular...

Note-se também o que a mão esquerda de César tem a acrescentar ao famoso 'Também tu, meu Bruto?'.

As Muralhas de Jericó - a sequela


Na versão original do filme, já muito antiga, as muralhas de Jericó caíam ao som de trombetas. Josué conduzia as hostes de Israel, após a morte de Moisés...

A sequela, exibida ontem em todos os ecrãs do planeta, traz a acção para os nossos dias sem perder o essencial da história. Josué é Ehud Olmert, que sucede a Ariel Sharon, um Moisés ainda não tecnicamente mas suficientemente morto. As alterações mais significativas são os bulldozers no lugar das trombetas, a bem da credibilidade do argumento, e a motivação da acção: enquanto no original se tratava de tomar posse da terra prometida, na sequela esse desiderato maior surge simbolizado no objectivo mais imediato de prender uns quantos sujeitos que já estavam presos.

Quanto aos bulldozers, nada a opor. Todas as experiências levadas a cabo em tempos recentes têm demonstrado que são muito mais eficazes que as trombetas, quando o que se pretende é deitar paredes abaixo. Quanto à missão, ela não é tão diferente como pode parecer aos espectadores menos atentos. Em última análise, trata-se de garantir a posse de um território sobre o qual possa vigorar a lei.

Claro que os críticos mais exigentes, como o nosso MNE Freitas do Amaral, não vão apreciar. Mas que o filme é bom, é. E que é bom saber que há gente que luta por aquilo que os outros gostam de apregoar, também é. Com trombetas, com bulldozers, com o que houver e tiver que ser.

SportTv de olho no Olhanense


Estreia na 5ª feira, 16 Março, às 19h00. Repõe a 17 (18h50) e a 20 (13h30).

"De Olhão na Subida"
Uma reportagem de Jaime Cravo.

Nos últimos 30 anos, os clubes do Sul foram varridos do mapa futebolístico de primeira linha. Quem não se lembra do Elvas? Quem não se lembra do Campomaiorense? Quem não se lembra do Farense, o último representante do Algarve no escalão máximo do futebol português?
Depois de em 1975 ter pisado os grandes palcos pela última vez, depois de uma longa travessia no deserto, o Olhanense é a mais recente esperança de toda uma região no regresso ao topo do futebol português.
O REPORTV foi acompanhar uma equipa da Divisão de Honra com património, sem dívidas, com salários em dia e que sem ter no horizonte a subida de divisão, está nos lugares de acesso à Liga Portuguesa.

«De Olhão na Subida» é uma reportagem sobre o Mestre Xico, o Carrada, o Zé António, o Branquinho e o Betinho, adeptos míticos de uma cidade que falam em nome de toda uma região ansiosa por futebol de primeira.

Edição de Imagem: Jorge Almendra
Repórter de Imagem: José Wergy
Grafismo: Patrícia Rocheta e Sofia Costa
Reportagem: Jaime Cravo

Tuguíadas I, 41/43 (Com Paulo Portas) (& Big Brother) (& rimas)


O Portas, que é ministro poderoso,
E que no seu jornal tanto zurziu
Tudo o que fosse mais indecoroso,
Mais tarde contra si virar-se viu,
Da suspeita, o vil rosto, tenebroso:
Será que na Moderna bem agiu?
Por ora vai escapando aos julgamentos,
Mas não já de prestar depoimentos.

E que dizer daquela horrorosa
Televisão de gosto indigente,
Que nos exibe a casa mais famosa
Onde se fecha a mais inócua gente?
Recheia-se a imprensa cor-de-rosa
Co'as caras desta malta repelente:
Sabemos, pois, quem foi que um peido deu,
E quem foi o que logo lhe bateu.

E bem longe estas mágoas nos levavam,
Bastaria tão só dar-lhes abrigo.
Mas a quem é que as mágoas apelavam?
Não sei se vou contar sequer comigo!
Fiquemos pois por essas, que já estavam
Contadas, por que não seja o castigo
Maior do que a lei dura, que mandava
Que ao menor pecador apedrejava.

(...)

14.3.06

Manifesto Pró-Dantes

Dantes é quera bom. Dantes havia respeito. As pessoas eram educadas. Não diziam foda-se.

Dantes dizia-se phoda-se.

Abre parentes, entre parentes, fecha parentes

No princípio, é o verbo nascer. Está-se, obviamente, entre parentes. Literalmente, está-se entre as pernas da parenta mais próxima. Está-se pronto para o hálito dos cigarros e dos charutos dos outros parentes, que esperam à porta.

No meio de mais ou de menos parentes, mais ou menos próximos, dão-se os primeiros passos, passam-se os parabéns a você, as primeiras comunhões, algumas passagens de ano, uma páscoa ou outra, passeia-se ou não, praia, piscina, piqueniques, patuscadas, porrada, as passas do algarve e de outras paragens.

No fim, morre-se. Finalmente. Está-se, uma vez mais, entre parentes. Morreu, diz um. É a vida, diz outro. E é.

Tuguíadas I, 38/40 (escândalos) (e sangue) (e tudo)


(...)

Houve aquele outro assunto muito sério,
Certamente também o comentaste:
Cadilhe comandava o ministério
Do carcanhol que ao fisco não roubaste,
E com alguma guita houve mistério;
O Independente grita: "Já gamaste!";
Se é bem certo que o caso era suspeito,
O que é que foi provado, de direito?

Mal seria se aqui não recordasse
Outro caso, o do sangue transplantado,
O tal que nunca foi mais que um impasse,
Por ter o tribunal ultrapassado
O prazo sem que o caso se julgasse.
Ó! Mas que triste sina! Triste fado!
Não há ocasião em que se veja
Que a precisa justiça feita seja?

Um belo dia lincha-se a Beleza,
Vem outro dia, fica perdoada!
Nunca nos ficaremos co'a certeza
De ter sido realmente ilibada,
Ou se daquele sangue da torpeza
Era a nossa ministra mui culpada:
E há muito quem no fim não se conforme
Com que a saúde assim não se reforme.

(...)

13.3.06

Tuguíadas I, 34/37 (Não aconselhável a menores) (nem a ninguém)


(...)

Árbitros: afinal, quem vos nomeia?
Einstein, acaso viva, não entende
Se alguém há, que os escolhe, ou se sorteia.
Já dá p'ra ter saudades do Resende
Silva, que tanta gente tanto odeia,
Esse facho que o dextro braço estende;
Mas são tantas e tais as que acontecem,
Que até os que são santos se enfurecem!

Digo-vos que água mole em pedra dura
(Ó frase tantas vezes repetida!)
Tanto bate e rebate até que fura;
Frase esta que não fica descabida
Se aplicada, por vera ser mas dura,
Naquela situação, bem conhecida:
Não há nome, por mais que seja honrado,
Que à calúnia resista imaculado.

Vede o moço Reinaldo, que jogava
E às contrárias redes estarrecia,
Qual águia, suas presas assustava;
Mas eis que preso fica, certo dia,
D'uma história vulgar, que divulgava
Ao povo o que privado ser devia;
No fim, saíu Reinaldo maltratado,
Do modo que diziam ter gozado.

Era, o jovem, temido centro-avante,
Rapaz avantajado e muito escuro,
E numa loura Laura, espampanante,
Terá dado c'o pau, no estado duro;
E, em lugar de fazê-lo por diante,
Foi pela retaguarda dar no furo;
Quedou-se a rapariga em pobre estado,
E muito foi tal caso comentado.

(...)

Tuguíadas I, 31/33


(...)

Da fina flor, da reles chungaria,
Do torresmo ou da mais fina lasanha,
Da velha Baixa à nova baixaria,
Todos querem saber quem mais se amanha,
Todos sonham ganhar a lotaria.
Mas para merecer sorte tamanha,
Tal como lá nos reza a velha história,
Há que estender a mão à palmatória.

Vede o recente exemplo, que deu brado,
Da tal Moderna escola: triste caso!
O Gonçalves, reitor, p'ra ser guiado,
Carros tinha, cinquenta, por acaso.
E aquele que se fez tão viajado,
Calheiros de seu nome, que deu azo
A dizermos que há os que sossegam
Porque pagam a outros, que sonegam.

Dizem muitos que leva vida bela
Aquele moço Lopes, que é Santana,
Leva por dia nova zurzidela:
Ora são saias, ora sai bezana;
Mas prova nunca vi: onde está ela?
Mil vezes repetida nos engana:
Mentira, que da língua viperina
Se solta, e todos crêem cristalina.

(...)

Nota: Relembro que estes arrazoados são bastante antigos. No caso concreto, muito anteriores à passagem do moço Lopes por S. Bento. Dos tempos em que nada indicava que o moço Lopes algum dia chegaria a poder propor a Joana Lemos como ministra. Claro que o interlocutor era o presidente-modelo, mas ainda assim dá para avaliar o grau de ressaca... O verso "Mas prova nunca vi: onde está ela?" perdeu, nesse momento, todo e qualquer sentido, supondo que alguma vez o teve.

12.3.06

O presidente modelo


Paula Rego, convidada a retratar oficialmente o ex-presidente, não poupa nos elogios a Jorge Sampaio: "Foi um modelo de primeira classe: não se mexeu durante horas. Esteve quieto, sem resmungar, sem se coçar". Presume-se que também não terá chorado nem falado muito.

Isto não aqaba?


Numa altura em que Spielberg trouxe à nossa memória os acontecimentos de 1972 em Munique, a rapaziada palestino-árabe não pára de nos surpreender com a sua veia desportiva. Dominando como poucos a modalidade do lançamento da pedra, desta vez o adversário que calhou em sorteio foram os participantes na Taça do Mundo de Triatlo. A prova disputou-se em Aqaba, na Jordânia, e contou com a presença de portugueses e portuguesas, com especial destaque para Vanessa Fernandes, campeã europeia da modalidade (e atleta do Sport Lisboa e Benfica) que venceu o restante mulherio sobre a terra e sobre o mar, nadando e correndo, de bicla e a pé. "Quando treinávamos fomos gozados, sobretudo pelos mais novos", relata Bruno Pais (triatlista do Belenenses e medalha de bronze em Aqaba). Até aqui, menos mal."Até houve atletas apedrejados. É tudo muito diferente", conclui Bruno Pais. De facto, o mínimo que se pode dizer é que é um posicionamento diferente perante o desporto e perante a vida em geral. Depois do exército israelita e das mulheres adúlteras, os cartoonistas e os triatlistas. Quem se seguirá?

10.3.06

A Pergunta


Pedro pescava perto da ponte, pés postados nas pedras polidas, pupilas piscando do sol a pique, ainda que protegidas pela pala do boné. Passa por ele um polvo e pergunta: Por que pescas, Pedro? Por que pesco, pensou Pedro. E disse: E por que não? Por outras palavras, pesco porque sim. E pescou o polvo.

Pouco tempo passado, um pargo que passa pergunta também: Por que pescas, Pedro? Pedro pensou mais um pouco e um pouco mais profundamente. E disse: Pesco por puro prazer. E pescou o pargo.

Posteriormente, outros peixes passaram. Todos pararam, perguntaram, ouviram. Todos perderam. Todos Pedro pescou, uns porque sim, outros porque não, alguns porque pois e um até, o pregado, porque ele próprio a Pedro o pediu. Aos pés de Pedro, o saco de pano pesava, pleno de tanta pesca.

Nisto, passa um pneu. Por instantes, Pedro pensou: Pergunta lá tu também, ó pneu. O pneu não perguntou. Mas, por alguma razão, essa foi a última vez que Pedro pescou.

Tuguíadas I, 29/30


(...)

Serão um dia humanos reciclados
A partir de alguns restos dos umbigos
De porcos ou macacos já finados?
Já espreitam no horizonte outros perigos:
Carneiros, todos nós, todos clonados...
Que pecado merece tais castigos?
Dizer que isto é progresso é idiota,
É dar à raça nossa baixa nota!

Telefones sem fios, quem diria!
Joguinhos com a marca da Nintendo,
Em sua nunca vista bizarria,
Nas mãos dessa canalha, que crescendo
Dentro, não só por fora, estar devia...
E não digais que não vos compreendo,
Vós, que sois o futuro desta gente,
Vós, pois, que tudo tendes pela frente.

(...)

8.3.06

Tuguíadas I, 26/28


(...)

Grande foto na capa: a rapariga
Furtado, Catarina lhe chamaram,
Ou aquela, cabeça de formiga,
A quem as mesmas câmaras filmaram,
Bárbara Guimarães, que há quem diga
Que os deuses raras vezes ajuntaram,
No mesmo ser, um corpo tão divino
E um cérebro, coitado, pequenino!

Matéria que vai páginas enchendo,
Que à parvoíce zero ou nada deve;
Linhas, poucas: importa ler correndo
E olhar para o boneco, que é mais leve.
Que estranho conteúdo, é horrendo!
Vão p'ró diabo, todos, que os carregue!
Mais vale, mal por mal, a tal Maria,
Revista com que, ao menos, há quem ria.

Leva cada jornal mais um caderno:
Que rumo dar a tanta papelada?
Reciclar fica bem, sei lá, moderno
Modo de processar a lixarada
(Por enquanto, discurso mais externo
Que coisa realmente praticada...).
Chegará breve o dia em que se veja
A lata, reciclada, dar cerveja?

(...)

6.3.06

Faz hoje 531 anos que Deus criou o Homem


O Homem, maiúsculo como poucos, sendo Michelangelo. O próprio, o di Lodovico Buonarroti Simoni, a não confundir em circunstância alguma com o dos Delfins...

Tuguíadas I, 23/25


(...)

Os autos lesto foram despachados:
Rogério, sem mercê, lá condenavam
A dois anos de prisa bem contados,
A qu'inda por de cima se somavam
Uns quantos tais de cheques pré-datados,
Que ao zarolho Valério compensavam.
Mas bem não ficaria, não dizendo
Que bem foi castigar o crime horrendo.

Relatado este caso, que foi quente,
Seguimos adiante com alento.
Se mais quereis saber da outra gente,
Daquela que se cerca de espavento,
Devereis então ler a Nova Gente
Ou a revista Caras — que não tento
Imitar, em seus jeitos mais mundanos,
Naquilo que a ler dão aos lusitanos.

Tanto tempo por tantos tão perdido
Na leitura de assunto tão pequeno,
Como: quem é de quem o preferido;
Ou: quem voltou de férias mais moreno;
Uma desfila agora num vestido,
Outra casou c'um tal de Mascareno...
Difícil é lembrar igual memória,
De tanta lixarada tão simplória!

(...)

Só tenho dois adjectivos


Ontem fui ao Barreiro e vim de lá com dois adjectivos: não gostei. A ideia era ver o Olhanense esmagar, espezinhar e estraçalhar o Barreirense. A realidade acabou por ser algo diferente: 2-0 para o Barreirense, que continua lanterna vermelha (e de que outra cor poderia ser a lanterna do Barreiro?) enquanto o Orgulho do Algarve se viu apanhado pelo Aves. Aplicam-se na perfeição as palavras de Manuel Machado, esse orador emérito: "Não há grande margem para leituras diversas, até porque o resultado é de alguma forma concludente".
Pormenores positivos, como as pevides e os placards "Óptica Miopia", "Construções Afoito" e "d'Padaria - pronto-a-comer", entre outros que circundam o relvado dos condenados, não chegam para apagar a péssima impressão desta surtida.

3.3.06

Já só faltam 303 dias


3 de Março, a acreditar na Wikipédia, é o 62º dia do ano para nós, Gregorianos convictos. Seria o 63º se, e só se, o ano fosse bissexto. A Wikipédia, corroborada pela maioria das calculadoras, aponta no sentido de faltarem 303 dias para a passagem de ano.

Cá não, mas hoje é feriado na Bulgária e no Malawi, por ser respectivamente dia da Liberdade e dos Mártires. No Japão observa-se o Hinamatsuri — que, como o nome indica, não passa de um festival das bonecas (tanto que se observa que até se ilustra, como se comprova aqui em cima). No Hinamatsuri reza-se e pede-se pelo crescimento e pela felicidade das crianças do sexo feminino. Os rapazes vão ter de esperar mais um bocadinho pelo Kodomo no hi, que é já depois de amanhã.

Faz hoje anos que:
o Papa virou Eugénio (em 1431, pela 4ª vez)
a Flórida foi aceite como Estado pelos restantes 26 Unidos (1845)
a França e os Estados Unidos, fossem eles quantos fossem, declararam guerra à China (estamos a falar de 1857, pessoal, hoje mais depressa se declaram guerra uns aos outros e todos pela China)
a Bulgária (lá está) recuperou a sua independência, vá-se lá saber para quê, das garras do Império Otomano (1878)
a regra do penálti chegou ao futebol, embora só venha a ser aplicada na época seguinte (1891) - hoje em dia já só falta ser usar-se em toda a sua plenitude no Dragão e no Camp Nou
o Kaiser Guilherme II tornou-se o primeiro ser humano a gravar um discurso político, recorrendo para tanto ao cilindro de Edison (1904)
foi assinado o famoso tratado de Brest-Litovsk, de acordo com o qual a Rússia saíu da I Guerra Mundial e, já agora, também da Finlândia, da Estónia, da Letónia, da Lituânia e da Polónia (1918, obviamente)
saíu o 1º número da Time (1923)
os não sei quantos Estados Unidos adoptaram o tema The Star-Spangled Banner como hino nacional (1931)
foi descoberto petróleo no Al Mamlakah al Arabiyah as Suudiyah, Reino da Arábia Saudita para os amigos (1938)
um tal de Mohandas Gandhi inicia um jejum em protesto contra o domínio autocrático da Índia (1939, em Bombaim, hoje Mumbai)
Elvis Presley fez a sua primeira tele-aparição (1955)
o jovem Nuri as-Said bate o recorde de investiduras no cargo de primeiro-ministro do Iraque, com 14 (catorze) pontos (1958)
os Fleetwood Mac gravaram aquele álbum inesquecível chamado... chamado... (1977)
as Nações Unidas deram por concluída a sua missão de paz na Somália (1995, com efeitos até aos dias de hoje)
foi inaugurada a Sky Tower, o maior edifício do hemisfério sul, em Auckland, na Nova Zelândia (1997)
a Suiça entra para as Nações Unidas, com claros benefícios para ambas as partes (2002)

Fariam hoje anos, se estivessem vivos:
D. João II de Portugal (nascido, com a graça de Deus e da senhora sua mãe — sua, do senhor D. João, e não Sua, do Senhor — em 1455)
Georg Cantor, alemão e matemático, por ordem cronológica (1845)
Alexander Graham Bell, inventor escocês (1922)

Faz hoje anos que morreram, e não consta que tenham ressuscitado:
o papa Pelágio I (561)
Lou Costello, o que não era o Abbott nem o Elvis (1959)
Hergé, nascido Georges Remy, pai do Tintim (1983)
Danny Kaye, americano, actor, cantor, comediante (!987)
Marguerite Duras, escritora francesa (1996)
Rinus Michels, o holandês treinador (2005)

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Mais concretamente aqui.

Tuguíadas I, 19/22


(...)

Já nos bancos de pinho se sentavam
Duma Justitae Domus, aguardando
Os que, de preta capa, discursavam
E os que proclamam: "Quero, posso e mando!"
Destes, os dois arguidos esperavam
Que em paz os dispersassem, perdoando
As faltas, que traziam perpretadas:
Que justamente não fossem julgadas.

Quem defende Valério, valoroso
Jurista, da lei justa defendente,
De seu nome Nabais, é bem famoso,
Na TV convidado frequente.
P'la parte de Rogério, o belicoso
Garcia, que é Pereira, e não consente
À sua contrária parte algum desplante,
Nem amigo é da Festa do Avante.

O meirinho, em voz alta, o julgamento
Declara, voz solene, começado.
Do Garcia o esperado atrevimento
Não tarda a incomodar o magistrado:
"No meu Juízo não tem cabimento
Falar assim, mais vale estar calado!"
Mas de pronto Pereira lhe responde:
"Não temo Rei, nem Duque, nem Visconde,

Quanto mais um juiz baixo, franzino,
Quanto mais com sotaque açoriano!"
Não custa adivinhar qual o destino
Deste caso, não haja desengano;
O juiz, com seu quê de sibilino,
Sentencia: naquele mano-a-mano,
Declara que é Rogério o meliante —
Só por ser do Garcia o "queliante"!

(...)

2.3.06

Chegou a hora do adeus


É verídico. O tio Sampas está de saída. É daquelas coisas que sucedem de quando em onde e que nos reconciliam com as virtudes da democracia. Nos seus últimos estertores, para além da brilhante ideia de publicar livros por altura do Natal, e não depois de vagar o cadeirão, como se poderia esperar, o cessante comoveu-se (e isso já seria de esperar) em Timor-Leste ao dar de caras com um livro que lhe tinha pertencido na infância e que imediatamente reconheceu, mesmo antes de o abrir e ver o seu nome numa das primeiras páginas. Quis-me parecer que o dito livro era uma gramática e que se encontrava a uso, numa escola, e não no museu da presidência timorense ou no de história natural. Espero sinceramente que tenha sido impressão minha. Não sei porquê, não consigo deixar de imaginar uma ou mais turminhas de timorenses a aprenderem a exprimir-se em português à maneira do menino Jorginho...

A Situação

Eis outra palavra que tem vindo a ampliar consideravelmente o seu espaço de influência no português corrente. Nem antes do 25 de Abril se ouvia tanta situação. O último exemplo, acabadinho de ouvir na TSF: 'é uma situação que acompanharemos e a que não nos opomos desde que não ponha em causa determinadas situações'. Situados?

1.3.06

Tuguíadas I, 16/18

(...)

Na prisa tem-se a vida por um fio:
Não raro vê-se um homem ser usado
Como é d'uso tratar o mulherio;
Quereis ver um recluso maltratado?
Esperai por um futuro desafio
Da bola: alguém vereis esfaqueado,
C'oa lâmina no ventre jovem, tenro,
Nem que seja enfiada pelo genro!

Não tiveram tal sorte desgraçada
Rogério nem Valério, mas de rosas
Foi um mar na prisão a sua estada.
Valério, dizem línguas venenosas,
Ali passou alegre temporada
Em práticas estranhas, escabrosas,
Fantasias da sua mocidade
(Nem Sodoma lhes dava liberdade!).

Rogério, por seu lado, sempre atento
Aos produtos que os outros tanto almejam,
Logo tratou de dar fornecimento
Daqueles tais dos pós (malditos sejam!)
Que acabam por matar em sofrimento
Aqueles desgraçados que os desejam.
E fez crescer pecúlio dilatado,
Quando era justo ser mais castigado!

(...)
imagem captada daqui.

O Palimpsesto


Antes do mais, para que esta história tenha alguma possibilidade de algum dia vir a ser entendida por alguém, convém esclarecer que um palimpsesto não é o mesmo que uma epístola (apesar de alguns palimpsestos poderem, eventualmente, ter desempenhado, em dada altura, funções epistolares).

Para quem o não saiba já, convém também desmentir peremptoriamente os rumores que têm as epístolas como as mulheres dos apóstolos. Nada de mais errado. Primeiro, porque de um apóstolo digno desse nome o mínimo que se espera é que seja solteiro. Segundo, porque as epístolas não passam de cartas. Como tal, a lei impede-as de contrair matrimónio com quem ou com o que quer que seja. Esclarecida esta questão, por assim dizer paralela, retomemos o ponto (prévio) da definição do palimpsesto.

Indo ao latim, coisa que todos nós deveríamos fazer mais frequentemente, vemos que palimpsesto não é mais nem menos que raspado de novo. Não se pense, no entanto, que este substantivo se emprega correntemente, a propósito de tudo e de nada. Não será fácil, por exemplo, ouvir o termo na cozinha de um restaurante qualquer, aplicado àquele hamburguer resultante da raspagem das sobras dos da véspera, os quais, por sua vez, eram já fruto da raspagem das sobras dos bifes e dos bitoques da antevéspera, e que vai à mesa e à ementa sob a classificação de Bife Raspado au Madeira.......9,00. Não. Numa cozinha de restaurante poderemos ouvir muitas palavras curiosas. Algumas até com mais de três sílabas. Mas palimpsesto, não.

Correntemente, ou melhor, tão correntemente quanto o permite uma palavra destas, palimpsesto emprega-se, à falta de um sinónimo menos abstruso, para designar um manuscrito encontrado num pergaminho, por debaixo de um ou mais escritos posteriores. Não se julgue, porém, que esse manuscrito foi lá parar por acaso. Nada disso. É que, para além de não terem muito mais que fazer, os monges copistas da Idade Média gostavam particularmente de raspar fosse o que fosse que estivesse escrito num pergaminho para depois escreverem outra coisa qualquer por cima. Se, em vez de pergaminhos, os monges copistas tivessem computadores, seria o equivalente a deitarem os documentos antigos para o lixo a fim de criarem novos documentos. Este hábito dos monges terá nascido, provavelmente, da existência de dificuldades no fornecimento de disquetes. Perdão, de pergaminhos.

A dada altura, ter-se-á espalhado o boato de que os textos antigos eram muito mais interessantes que os novos, o que fez com que alguém se tenha dado ao infinito trabalho de fazer reaparecer os caracteres primitivos. Nascia assim o genuíno palimpsesto, que não é senão o tal texto que se descobre num pergaminho, por baixo de outro ou outros textos. As mais das vezes, evidentemente, os palimpsestos têm tanto ou tão pouco interesse como os textos que os cobriram, ou seja, nenhum. Mas alguns há que acabam por justificar a trabalheira que dão.

É um desses, trazido de novo à luz do dia em meados do século XIX, que está na origem desta história. Só que, entretanto, mãos criminosas, ou simplesmente inconscientes, o desviaram. Desde 1912 que nunca mais ninguém o viu. Do ponto de vista do leitor, isso foi o melhor que poderia ter acontecido, atendendo a que, sem ver o palimpsesto com os seus próprios olhos, este autor se recusa a dizer seja o que for sobre ele. A não ser que, segundo várias fontes, era muito bonito. Especialmente, e ainda segundo essas fontes, à luz das primeiras horas do dia.

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