"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

7.10.08

Noé ou Noddy?

Peço muitas desculpas não sei bem a quem, mas vou ter de fustigar um spot de rádio*. Já não o faço há muito tempo e este tem-me andado atravessado.

Não, não é aquele da ExpoCasa ou lá o que é, que agora até foi promovido à TV, que diz que "tem coisas giras". Não é esse. É um do Jornal de Notícias (a não ser que seja do Diário do Notícias) (ou do Primeiro de Janeiro), que se destina a divulgar uma colecção de histórias bíblicas destinadas às crianças.

O spot segue o tradicional esquema das duas partes (a que também poderíamos chamar o esquema azeite e vinagre). A primeira parte é publicitária, a segunda é informativa e as duas não se misturam. É um esquema que muitas vezes acaba por ser o único possível, por muitas razões (razões em que, para gáudio geral, me vou abster de entrar).

Antes de a desancar um pouco, faça-se à primeira parte do spot a justiça que merece. Cumpre, no mínimo, o papel de chamar a atenção, se não nunca me lembraria daquilo e não poderia agora passar à zurzidela.

O caso não anda longe de um outro que tive oportunidade de escarafunchar aqui. Diga-se desde já que o Jornal Diário de Janeiro não vai tão longe na estupidez como a SalesForForceFourSearch. Aliás, para um ouvinte medianamente desatento e menos picuinhas do que eu, provavelmente até estará bem conseguido. Diga-se também, já agora, como é o spot: a segunda parte, a do azeite informativo, é a que permite recordar nitidamente que o anunciante é o Jornal Diário de Janeiro (a menos que seja o Comércio do Porto ou o Correio da Manhã) e que o anunciado é a colecção de histórias tiradas da Bíblia para dar às criancinhas.

A primeira parte, a do vinagre publicitário, consiste naquilo que se deduz ser o início da história da Arca de Noé, contada por uma voz feminina, doce e maternal como se impõe nas circunstâncias. O que ouvimos da história é qualquer coisa como: "Era uma vez um senhor chamado Noé que adorava animais". Para o tal ouvinte desatento, tudo bem (presumo eu). Para um desinfeliz como eu, incapaz de se ficar apenas pela forma e abstrair do conteúdo, estamos mal.

Ao contrário do caso da SalesForForceFourSearch, aqui o universo bíblico faz sentido. Não é forçado nem é opção, é o próprio produto. E esse é que é o meu problema. Talvez por acaso, talvez por ignorância, talvez por uma conjugação dos dois factores, o certo é que "adorar animais" era das piores coisas que podiam acontecer na história do Noé. O clímax da história é o Dilúvio, um cataclismo desencadeado por um deus que à época se mostrava particularmente empenhado em afirmar-se como O Deus, não como um mas como o único. Quem leia o Génesis na versão não adaptada às criancinhas do século XXI percebe que a concorrência era numerosa e variada. Entre divindades de todo o tipo e feitio, havia uma propensão para adorar animais que irritava solenemente o Senhor. Foi por essas e por outras, justamente, que Deus decidiu partir para o genocídio.

Não sei se esta versão infantil retrata o clímax da história de outra forma, mas o Dilúvio do Génesis não foi o produto de umas alterações climáticas nem uma tempestade tropical de intensidade inusitada. Foi uma demonstração inequívoca e brutal do poder divino, com o intuito original de extinguir a raça humana. Só à última da hora é que Deus decide salvar alguém e escolhe um tipo qualquer que não ande a adorar os animais nem outros pretensos deuses. O escolhido é Noé, claro. Este, por sua vez, limita-se a fazer o que o Senhor lhe manda. A história não é "ai coitadinhos dos animais que vão morrer todos, que desgraça, já sei, vou fazer uma Arca e salvá-los — pensou o Noé". A história é "escuta bem, Noé, que eu não vou dizer isto duas vezes, fazes uma Arca e metes-te lá dentro sossegadinho com a tua senhora e um casal de animais de cada espécie, se não estamos mal contigo — proferiu o Senhor". Por muito que se adapte, por muito que se actualize o estilo, a história é esta e não outra.

Se eu quisesse incutir valores religiosos a alguma criancinha, gostaria que, do Génesis, ela retirasse pelo menos a ideia de que há um e um só Deus, que O temesse e respeitasse porque Ele é capaz de tudo e de mais um par de botas, e que a única forma aceitável de O adorar é em regime de absoluta exclusividade. Para quem não quer introduzir o tema Religião na educação da canalha ou para quem acredita que os tempos mudaram e a canalha de hoje já não deve ser exposta às overdoses de escatologia e cataclismo do Antigo Testamento, há sempre o Noddy.

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* Claro que posso estar aqui a cometer uma enorme injustiça, no caso de o spot estar contaminado exactamente pelo produto. Mas, mesmo nesse caso, a injustiça será mais aparente do que outra coisa. Não me interessa nada de quem é o erro, do anunciador ou do anunciante, interessa-me o erro em si.

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1 comment:

CPrice said...

brilhante Caro José :)