"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

8.10.08

Foi você que falou em irreversibilidade?


"Na sequência de um amplo e diversificado conjunto de contactos prévios (...), foi esta tarde enviada uma carta do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros ao seu homólogo do Kosovo onde se comunica que, com efeitos a partir desta data, o Governo Português reconhece formalmente a República do Kosovo como Estado soberano e independente", diz ao povo e ao mundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Governo da República Portuguesa.

Diz que, feita "uma avaliação metódica da questão", "constatou que as autoridades do Kosovo têm respeitado os compromissos assumidos perante a ONU" e "entende que a evolução dos acontecimentos no Kosovo é globalmente positiva". Presumo que com isto se queira dizer que estamos muito contentes e nos damos por muito satisfeitos por, oito meses depois da declaração de independência, ainda não ter havido guerra da grossa ali naquele sítio tal e qual. A da Geórgia não conta, porque é mais para acolá.

A palavra-chave mais usada ontem pelo ministro Amado (pareceu-me mesmo que era a única, mas pode ser um disparate da minha parte) é a irreversibilidade. Antes do Amado ministro, já tinha vindo o inenarrável Lello preparar o terreno para o triunfo da irreversibilidade. Claro que não há conceito, por mais virtudes que tenha, que resista a ser anunciado por José, o Lello. E este da irreversibilidade está longe de ser virtuoso. Irreversibilidade não é mais e chega a ser bastante menos que a famosa real politik: as coisas são como são e os estados, sendo como são, fazem as coisas que fazem porque as coisas e os estados assim o exigem.

Ao contrário da real politik, que contém uma componente de procura activa de um interesse do estado, a irreversibilidade é um conceito de absoluta passividade, que também poderíamos designar por no politik (ou a política do Maria-vai-com-as-outras, como Santos Pereira bem resume). É a mera constatação de facto. No caso do Kosovo é pior um pouco, porque nem o Zandinga se atreveria a prever o que se vai passar nos Balcãs nos próximos tempos, quanto mais o Lello ou o Amado.

Até ontem, julguei que era a real politik que levava a República Portuguesa a não se precipitar no reconhecimento do Kosovo. Não indo mais longe, o precedente kosovar pode dar verdadeiras arrelias em Espanha. Já deu na Geórgia. E não há razão nenhuma para não dar em Chipre, na Córsega, na Irlanda, na Bélgica, na Macedónia, em Cabinda, na Transilvânia, no Alasca, na Madeira, nos Açores, nas Berlengas ou na Cova da Moura. Por exemplos.

Timor-Leste é a prova (essa sim, mais que provada) de que o princípio da irreversibilidade vale o que vale, para não dizer menos. Se Portugal fez alguma coisa foi não aceitar a anexação/integração como irreversível e, provavelmente com boas doses de real politik, conseguir convencer outros estados das vantagens da não aceitação da irreversibilidade. Foi teimar e teimar e teimar até à reversibilidade total.

Ontem o Amado não estava muito numa de dar explicações, talvez porque não as tenha para dar. Abespinhou-se todo com uns deputados e lá fez à noitinha o grande frete de passar um quarto de hora com a Ana Lourenço. Sem ser a irreversibilidade, só o ouvi falar em timing (conceito para o qual o Lello não nos tinha alertado). O timing era justamente a única coisa que eu pensava que Portugal estava a gerir com real inteligência. Sendo óbvio para toda a gente que a posição de Portugal, em si, não aquece nem arrefece coisíssima nenhuma, havia todo o espaço do mundo para escolher o tempo do anúncio (dando de barato que haja boas razões, das tais da real politik, para que se acabe por chegar ao reconhecimento e consequentemente o timing seja a única verdadeira questão a resolver).

O Lello pode não perceber e o Amado pode não saber explicar, mas o certo é que ontem a República Portuguesa deitou o precioso timing pela janela fora. Durante estes oito meses, ingenuamente, pensei que o timing do anúncio seria cuidadosamente articulado com Espanha, no mínimo, e de forma que não deixasse dúvidas a ninguém (até a Manuela Ferreira Leite entenderia sem necessidade de se deslocar a Belém). Mas não. É que, no meio de tudo o que não disse e em resposta a tudo o que a Ana Lourenço não lhe perguntou, o Amado ministro lá deixou escapar que de toda a pandilha que ainda não tinha "dado este passo" (reconhecer aos kosovares o direito à independência e a festejá-la com bandeiras da Albânia) Portugal é o único país que não tem nenhum problema interno do género e "não quer criar nenhum problema artificial".

Como diria um amigo meu que é lá daquelas bandas: pushy kurats (o meu amigo escreveria isto como deve ser, em cirílico, mas eu não chego a tanto, fico-me por uma transcrição relativamente fonética).

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1 comment:

Anonymous said...

À luz do que aqui está (muito bem) escrito e li, o nosso amigo que é lá daquelas bandas diria, para além de pushy kurats, stupidosky ou burrosni (claro que escreveria correctamente em cirílico).