"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

23.4.08

Middle-earth Day

“Long they laboured in the regions of Eä, which are vast beyond the thought of Elves and Men, until in the time appointed was made Arda...” (J.R.R. Tolkien, Valaquenta)

Para os menos iniciados, vamos por partes até chegarmos à Terra-média (suponho que seja assim que se escreve em Português, pelo menos enquanto não vem o aborto ortográfico e passa a Bilubilu ou coisa que o valha).


Primeira parte (começando pelo fim, que é sempre o mais apetecido): Valaquenta. Que é lá isso? Dando de barato que até os não-iniciados sabem que J.R.R. Tolkien é o autor d'O Senhor dos Anéis, bastará dizer que Valaquenta é o nome do segundo capítulo de outro livro do mesmo autor (edição póstuma, do filho Christopher), que dá pelo nome de Silmarillion. Em algum não-iniciado insistindo muito, eu terei todo o prazer em discorrer um pouco sobre o Silmarillion, que é o meu Tolkien preferido. Em insistindo um pouco mais, o não-iniciado ganhará um conselho inteiramente grátis: leia o livro (talvez com o cuidado prévio de ler O Senhor dos Anéis antes, só para ganhar um pouco de balanço).

Segunda parte: . Eä? Ai ai ai que isto agora começa a complicar-se, dirá o não-iniciado. Ui ui ui que isto começa a complicar-se deliciosamente, digo eu. Para não ofender demasiadamente os não-não-iniciados com demasiadas explicações óbvias (afinal de contas não queremos ser nenhum Vitorino), bastará dizer que o tal Silmarillion é a modos que uma mitologia da Terra-média, que começa muito no género do Génesis (este Génesis, para os não-letrados-de-todo, é o primeiro livro da Bíblia, sendo que livro é o que se costuma chamar aos capítulos da Bíblia, que por sua vez é um livro ainda mais vendido que O Senhor dos Anéis e que nem sequer é muito pior). Voltando à base: Eä não é mais que o nome que Tolkien dá ao universo, criado por um deus todo-poderoso. Ilúvatar, esse deus, O deus único*, cria o universo, a partir do nada, dizendo a palavra 'Eä!', que se poderá traduzir por 'Seja!' ou 'Sê!'.

Terceira parte: Arda. Para quem chegou até aqui na relativa posse das suas faculdades, esta é fácil. Sendo Eä o Universo, o Todo, Arda é o Mundo, o planeta habitado pelos povos e pelas personagens que os não-completamente-não-iniciados conhecem d'O Senhor dos Anéis. Quando Ilúvatar, por interpostas divindades menores, concebeu este Mundo, Arda, fê-lo para que duas raças que tinha em mente vir a criar, por isso apelidadas os Filhos de Ilúvatar (os Elfos e os Homens), tivessem onde habitar. Simples, não? Suponha o estimado leitor não-iniciado que é um deus todo-poderoso. Suponha também, já agora, que para além de si próprio não existe rigorosamente mais nada nem mais ninguém, pela única e exclusiva razão de que o estimado leitor não-iniciado, talvez não suficientemente compenetrado do seu novo papel de deus todo-poderoso, ainda não criou coisíssima nenhuma. O que é que o estimado leitor não-iniciado faria numa circunstância dessas? Dir-me-á que não sabe. Mas, qual António Vitorino, aposto consigo em como, mais dia menos dia, mais milhão de anos menos milhão de anos, o Estimado (se me permite abreviar assim) acabará inevitavelmente por fazer qualquer coisa, seja o que for. Que sentido faz um Estimado todo-poderoso que tudo pode e nada faz? Sentido nenhum. Ora, em fazendo seja o que for, o Estimado acabou de criar um tudo, por contraposição ao nada que até aí existia (sem desprimor para o Estimado, que para além de todo-poderoso é pré-existente, mas que se nada fizer para todo o sempre ficará, também para todo o sempre, um Estimado completamente anónimo e deslocado, para não lhe chamar inútil e calão, que não são coisas que se chamem a um Estimado). Suponha agora o Estimado, para terminar o parágrafo e passarmos então à Terra-média, que, ao fazer a tal primeira coisa, a que estamos a chamar Tudo por uma questão de simplificação, o Estimado se deixa levar pelo entusiasmo e desata a criar mais isto e mais aquilo. Para além de estar a lançar as raízes mais profundas da expressão 'tudo e mais alguma coisa', o Estimado estará a enriquecer com pormenores o tal universo que criou no início. Basta que, no meio desses pormenores, o Estimado conceda a uma determinada espécie o dom de falar e de criar para que, mais cedo ou mais tarde, essa espécie se ponha a dar nomes às coisas. E, como diria o António Vitorino, aposto que as criaturas irão chamar Universo ou Eä ou coisa do género ao tal Tudo e Arda ou Mundo ou Terra ou Earth ou assim ao cantinho onde o Estimado decidir instalá-las.

Quarta e última parte (eia! eia!): a Terra-média. Supondo que o estimado (agora de novo com minúscula, se não se importa, acabou-se a fantasia de o estimado ser um deus todo-poderoso, lamento muito), supondo então que o estimado leitor não-iniciado acompanhou estes chamemos-lhe raciocínios até aqui, não vou insultar a sua inteligência insinuando que o estimado ainda não deduziu que, sendo Eä o Universo e Arda o Mundo, a Terra-média há-de ser uma espécie de continente desse mundo. E não é que é mesmo? É difícil esconder seja o que for ao estimado! Omnisciente, o estimado, quase me atreveria a dizer.

Posto tudo isto, resta apenas saber o essencial: a que diabos vem esta conversa toda sobre a Terra-média e demais tolkienices? Pura e dura mania de ser do contra, estimado. Ontem era Dia da Terra no Google, era Dia da Terra no YouTube, era Dia da Terra em todo o lado. Aguentei-me, malhei um nadinha no Vitorino só para não enferrujar e mantive-me sossegadito em relação ao Dia da Terra, para não ofender ninguém. Mas hoje já não é Dia da Terra, graças ao Estimado (chamemos-lhe assim, pelo menos até ao fim do texto, se o estimado não se importa). A protecção da porcaria do planeta virou religião nos piores sentidos do termo. Entre um fundamentalista islâmico, um fundamentalista cristão, um fundamentalista judeu e um fundamentalista ambiental, venha o Estimado, ou o seu pior inimigo, e escolha. Eu não sou capaz.

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* Ilúvatar é também referenciado como Eru, mas isso é o tipo de coisa que não ajuda a credibilizar A Obra junto dos não-iniciados, tal como o pormenor de que o marido da Galadriel, que acabou por ficar conhecido por Celeborn (se lhe der para ler isto em voz alta é favor pronunciar Kéléborn), nos primeiros rascunhos surgia com o algo duvidoso e muito pouco élfico nome de Teleporno.

4 comments:

CPrice said...

já cá tinha vindo Caro José, mesmo não comentando na altura, portanto o seu aviso lá pelas minhas linhas caiu na água (risos) .. não me vou alongar nas consequências dos tais fundamentalismos que refere.
Mas prometo que não mostro à gente pequena lá de casa ;)
Brilhantemente escrito como sempre.
Mesmo em desacordo com o que sinto sobre o tema. :)

Anonymous said...

Um homem vai a blog e lê uma coisa, vai a outro e lê outra. Assim um homem baralha-se. A Terra não era daquele gajo que foi comido pelo Leão? Vens tu e dizes-me que é do Senhor dos Anéis, levando a crer que é do Estimado. Eu cá acho que o pessoal não está nem aí para a Terra e sim para o salário, as férias, as compras de Natal e por aí adiante. O resto são fundamentalismos que dão pelo nome de cinismos.

Nuno Miguel Guedes said...

Er...Hmmm...Quer dizer, eu... pronto, e a Clare Gorgan, pá, é groink?

José, o Alfredo said...

Na altura não era nada groink. Agora parece que apresenta não sei o quê na televisão lá das ilhas, mas não tenho visto...