"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

10.11.08

Abatut ou valetut?


Vem o que se segue a propósito dos recentes percalços na banca e restante sistema financeiro. Vem muito particularmente a propósito do percalço BPN.

Aqui há tempo, referi aqui um livro chamado A Catedral do Mar. A acção passa-se em Barcelona, em tempos medievais, e lá pelo meio há referências históricas muito interessantes ao sistema de regulação das actividades financeiras. Daí o ter-me ocorrido.

Sem querer enquadrar demasiado (isto é, sem chegar ao ponto Weber e à influência da ética protestante no espírito capitalista), há que pelo menos referir que a cristandade da altura não via o juro com bons olhos. As actividades de agiotagem, financiamento, seguros e quejandas eram interditas ou desaconselhadas a cristãos. E eram muito reguladas.

Em Barcelona, no tal exemplo que me chegou via Catedral do Mar, havia um código penal bastante penalizador das aventuras e dos incumprimentos. Um tipo com loja (de dinheiro) aberta que por algum motivo deixasse de assegurar o cumprimento das suas obrigações era considerado abatut. Esta figura jurídica não deveria andar longe daquilo a que chamamos falência e resultava directamente da incapacidade de respeitar determinados rácios de solvabilidade. Uma vez constatada a situação de abatut, o financeiro em causa tinha um período de tempo (não muito extenso) para regularizar as suas contas. A parte final desse período de tempo era passada já na condição de engaiolado. Findo o tal prazo, se o abatut se mantivesse, o sujeito era decapitado.

Descontada a brutalidade da época, compreende-se a intenção de manter sãs as operações financeiras. É que o dinheiro já na altura tinha a mania de não cair do céu. Então como agora, em Barcelona como cá ou em qualquer parte, quando alguém decide ficar com muito mais do que tinha, há uma tendência fortíssima para que outrém fique com muito menos.

Parece-me muito bem que, no século XXI, já não cheguemos ao ponto da decapitação. Mas não me parece nada bem que, cá pelos nossos lados, se tenha evoluído para um sistema de impunidade total. As leis da física monetária não se alteraram — ele continua a não cair do céu, continua a não nascer do chão e continua a fazer falta a todos. Por isso, não há razão para que os códigos e as práticas penais não continuem a punir todas as formas de apropriação indevida, comummente conhecida por roubo. Mas, se há coisa de que podemos estar certos, é que nada vai acontecer e os negócios de Portugal (os do dinheiro e os da justiça) continuarão como de costume. Ou seja, mal.

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Obrigado ao L. Rodrigues, que me indicou a via para a reapropriação do tão necessário mini-caixotinho.
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