"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

24.3.08

Conceitos e preconceitos


Ainda a respeito* do Médio Oriente ou do conflito israelo-palestiniano**, o que não falta por aí são mitos e factos fictícios. Um dos mais fortes e perenes, contra o qual a pobre e desinteressante realidade dos factos factuais pouco tem podido, é aquele que nos apresenta Israel como a encarnação do mal em geral e a parte intolerante em particular e o outro lado*** como vítima de intolerância indiscriminada e expoente máximo da tolerância, nomeadamente religiosa.

Resumindo e desbaralhando: havia até há muito pouco tempo uma ideia de que os árabes/muçulmanos eram o exemplo vivo da tolerância religiosa; o que, por sua vez, implicaria necessariamente e automaticamente que os palestinianos, como legítimos representantes ou campeões dessa cultura (para não lhes chamar símbolos ou mascotes de alguns interesses), seriam as vítimas injustiçadas de uma segregação quase sem paralelo.

Como tantas vezes acontece com os mitos e com os factos fictícios, a ideia não era completamente errada, tinha mesmo profundas raízes de verdade que lhe permitiam florescer. O problema é que para encontrar essas raízes históricas, esse fundo de verdade, temos que recuar séculos e mais séculos. Temos que chegar às origens do pensamento democrático, à Revolução Francesa, e recuar ainda uns bons séculos. Temos que chegar à Idade Média, ao período mais negro e mais intolerante do cristianismo (e não, note-se, do judaísmo), para encontrar no Islão um contraponto de tolerância/respeito/civilidade/convivência.

Qualquer tentativa de transposição para os nossos dias só resulta com base na ignorância, no preconceito, na teimosia, na estupidez, na inconsciência e na preguiça mental (isto para só falar nos artigos de venda livre, que se encontram em abundância, sem chegar aos casos mais críticos, que já exigem receita médica, como o fanatismo, a má-fé, o anti-semitismo ou o esquerdismo, por exemplo).

Não vou questionar o facto, comummente aceite, de que uma boa parte do Islão tratava com humanidade os judeus e os cristãos na mesma época em que uma boa parte da Cristandade perseguia fervorosamente os judeus e os mouros (tal como os ateus e os cristãos de outras facções). Também não vou usar os seguintes números como argumento a contrario, porque eles podem simplesmente reflectir a existência e o poder de atracção de um novo estado judaico para os judeus da diáspora, por um lado, e as consequências inevitáveis de umas quantas guerras (ou de umas quantas batalhas da mesma guerra), por outro. Para não usar um argumento falacioso, não uso os números como argumento, mas eles aqui ficam:


Em 1948 (declaração dos dois estados na Palestina, independência de Israel, ou Catástrofe, consoante o ponto de vista) havia 160.000 árabes no território israelita. Em 2003 havia 1.400.000. No mesmo período, a evolução da população judaica em países árabes foi a seguinte:

Argélia: 140.000/<100
Egipto: 75.000/200
Iémen: 55.000/200
Irão: 100.000/11.000
(ok, não é um país árabe, mas para o efeito também conta e não é pouco)
Iraque: 150.000/100
Líbano: 20.000/100
Líbia: 38.000/0
Marrocos: 265.000/5.500
Síria: 30.000/<100
Tunísia: 105.000/1.500

Não tendo usado estes números para defender coisíssima nenhuma (apenas para mostrar que eles existem e que, com inconsciência, ignorância, facciosismo ou má-fé podem ser usados para defender seja o que for), permito-me, isso sim, apresentar alguns dados que justificam que eu seja do lado de que sou. (Quem não tenha mesmo pachorra para factos é favor retirar-se, com um compreensivo e respeitoso shalom da minha parte).

Os 1.400.000 árabes residentes em Israel (e aqui poderá usar-se com propriedade o termo palestinianos) representam 18 a 20% do total da população do país. O árabe é uma das línguas oficiais do Estado de Israel, em pé de igualdade com o hebraico. Existem 5 partidos políticos árabes, que já chegaram a ocupar 10% dos lugares no parlamento.

Exceptuando a Jordânia (onde se considera que existe alguma liberdade académica, expressão artística parcialmente livre e entrada relativamente livre de arte, literatura e imprensa estrangeira), Israel é o único país da região que não tem censura e onde a religião não está fora do alcance da liberdade de expressão e de crítica.

Ponto por ponto (vá lá que são só três...) aqui vão alguns lembretes aos bravos defensores dos oprimidos de todo o mundo:

Ponto 1. Direitos Políticos

Israel tem: a) eleições livres e justas; b) partidos da oposição legais; c) participação política de minorias.

A Jordânia tem um pouco de tudo isto (em doses bastante moderadas para critérios ocidentais, mas tem). A Autoridade Palestiniana permitiu, em certa medida, a legalização de partidos da oposição (como se sabe, o Hamas constituíu-se como partido e ganhou eleições; resta ver se o Hamas permitirá a legalização de outros partidos). No Líbano, apesar de não se poder falar em eleições livres e justas, tem havido alguma existência de partidos e de participação política de minorias.

Países como a Arábia Saudita, o Sudão, a Síria e a Líbia não têm sequer vestígios de nada disto. O Iraque, que até 2003 estava neste pacote, teve depois da invasão eleições aceitavelmente livres e justas e no resto é mais ou menos o que se sabe, para não dizer pior...

Ponto 2. Direitos de Cidadania

Em Israel são reconhecidos a todos os cidadãos os seguintes direitos: a) de Liberdade de Expressão e Reunião; b) de Julgamento Justo e Aberto; c) de Liberdade Religiosa.

Para simplificar, comecemos por dizer que nenhum dos restantes e já referidos países consagra ou reconhece plenamente nenhum destes direitos. A Jordânia aceita os três, mas com restrições. O Líbano reconhece, também com limitações, alguns direitos de expressão, reunião e prática religiosa. O Egipto tolera, até certo ponto, a liberdade de expressão e de reunião. A Autoridade Palestiniana reconhece, pelo menos em teoria, um módico de liberdade de culto religioso.

Ponto 3. Direitos da Mulher

Em Israel a percentagem de iliteracia entre as mulheres (15 anos e mais) é de 4,4%. Na Arábia Saudita é de 30,7%. No Egipto, 56,4%. No Irão: 29,6%. No Iraque: 75%. Jordânia: 15,3%. Líbia: 28,0%. Síria: 36,0%. Autoridade Palestiniana: 23,0%.

Todos estes países (à excepção de Israel) impõem restrições à liberdade de movimentos das mulheres, nomeadamente através da exigência de autorização do marido ou de um parente do sexo masculino para que a mulher possa viajar.

A percentagem de mulheres na população activa é de 45% em Israel. Arábia Saudita: 13%. Egipto: 21%. Irão:12%. Iraque: 18%. Jordânia: 21%. Líbia: 21%. Síria: 19%. Autoridade Palestiniana: 11%.

E é isto.

* Obrigado, major, pela introdução do respeito nestas conversas, que bem precisam dele.

** A receita funciona na perfeição se substituir 'palestiniano' por qualquer outro ingrediente à escolha: árabe, muçulmano e islâmico. Claro que não são sinónimos, mas para o assunto em apreço a única diferença objectiva prende-se com os palestinianos. Acontece que, sem ser os próprios palestinianos, que são pouquíssimos, e os israelitas, que não são muitos mais, ninguém quer saber deles para nada.

*** Uso esta expressão para simplificar. O outro lado são os outros lados todos que não se podem ver em tudo o mais mas que se unem contra Israel. Os referidos na nota anterior (**) serão os mais óbvios, mas há também outros lados, mais à esquerda ou mais à direita: os esquerdistas, os extremo-esquerdistas, os bloco-de-esquerdistas, os relativistas, os neo-relativistas, os neo-fascistas, os neo-nazis...

4 comments:

Ricardo Alves said...

As comparações estão bem feitas, tirando um ou outro detalhe? Mas, porque não foi incluída a Turquia?

José, o Alfredo said...

A Turquia não aparece por falta de números. Não por culpa da Turquia, naturalmente, mais por culpa minha, ou das minhas fontes. Que, outro erro meu, não mencionei. São elas: o Departamento de Estado dos EUA, o Human Rights Report (ONU-2003 e 2004), o Arab Human Development Report (ONU-2002) o CIA Factbook (2003), o Freedom House Annual Report (2005 e 2006), o Knesset, a Universidade de Yale e a CBS... Uma salsada que não fica nada a dever à confusão da zona!

Anonymous said...

E eu continuando a gostar de ler o meu amigo mas deveras preocupado com a profundidade e franqueza com que o tema é abordado... é que o big brother can be watching you, my friend, e ainda arranjas para aí uns inimigos que não interessam a ninguém... esses mesmo da pouca ou nenhuma tolerância e pouco respeito pela vida humana, incluindo a deles... ;)

Artur Corvelo said...

ora aí está.