"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

18.12.06

Mártires por ordem divina (e alfabética)


Espero não estar a incorrer em delito de qualidade nenhuma, relacionado com direitos de autor ou coisa que o valha. Já tenho uns sujeitos das Finanças à perna, que me acusam de lhes estar a dever 59 euros, e não me dava jeito nenhum ter também a SPA, a Editorial Caminho e quiçá o próprio Partido Comunista no encalço. O que se passa é que vou transcrever aqui, já de seguida, um excerto de um romance do Saramago.

Vem esta transcrição a propósito do tema recorrente, quando se fala de Saramago, da pontuação, ou da falta dela. Eu, que sou apreciador e admirador confesso da escrita do homem (tanto do estilo como da maior parte do conteúdo), costumo dar como exemplo de puro e simples virtuosismo a maneira como, volta e meia, o sacrista consegue apresentar um mero rol de coisas, uma singela enumeração, uma mísera lista, sem nada destes adjectivos que eu estou para aqui a usar, sem mais recurso (para além do talento) que a vírgula.

Se isto não é escrever bem, o que será?

(Só para situar um pouco: este extracto é d'O Evangelho segundo Jesus Cristo. Mas o maroto faz isto noutros livros, com uma aparente facilidade, que chega a dar uma certa raiva... Mas adiante, à citação (que é longuita e que se faz tarde). Neste caso, o que se passa é uma conversa a três, entre Jesus, Deus e o Diabo. Após grande insistência de Jesus, que quer saber quanto sangue será derramado em seu nome, Deus começa por lhe dar uma ideia do que vai acontecer aos apóstolos e outros próximos. Depois, atendendo a que Jesus não desiste e insiste em querer saber tudo, Deus vai por aí fora. Claro que é o tipo de coisa que exaspera os barbudos das sub-espécies dos ayatollahs, sousa laras e outros neandertais que tais, mesmo sem lerem. Para os outros, se os há por aí, cá vai disto.)

"Conta, quero saber tudo. Deus suspirou e, no tom monocórdico de quem preferiu adormecer a piedade e a misericórdia, começou a ladainha, por ordem alfabética para evitar melindres de precedências, Adalberto de Praga, morto com um espontão de sete pontas, Adriano, morto à martelada sobre uma bigorna, Afra de Ausburgo, morta na fogueira, Agapito de Preneste, morto na fogueira, pendurado pelos pés, Agrícola de Bolonha, morto crucificado e espetado com cravos, Águeda de Sicília, morta com os seios cortados, Alfégio de Cantuária, morto a golpes de osso de boi, Anastácio de Salona, morto na forca e decapitado, Anastásia de Sírmio, morta na fogueira e com os seios cortados, Ansano de Sena, morto por arrancamento das vísceras, Antonino de Pamiers, morto por esquartejamento, António de Rivoli, morto à pedrada e queimado, Apolinário de Ravena, morto a golpes de maça, Apolónia de Alexandria, morta na fogueira depois de lhe arrancarem os dentes, Augusta de Treviso, morta por depitação e queimada, Aura de Óstia, morta por afogamento com uma mó ao pescoço, Áurea de Síria, morta por dessangramento, sentada numa cadeira forrada de cravos, Auta, morta à frechada, Babilas de Antioquia, morto por decapitação, Bárbara de Nicomedia, morta por decapitação, Barnabé de Chipre, morto por lapidação e queimado, Beatriz de Roma, morta por estrangulamento, Benigno de Dijon, morto à lançada, Blandina de Lião, morta a cornadas de um touro bravo, Brás de Sebaste, morto por cardas de ferro, Calisto, morto com uma mó ao pescoço, Cassiano de Ímola, morto pelos seus alunos com um estilete, Castulo, morto por enterramento em vida, Catarina de Alexandria, morta por decapitação, Cecília de Roma, morta por degolamento, Cipriano de Cartago, morto por decapitação, Ciro de Tarso, morto, ainda criança, por um juiz que lhe bateu com a cabeça nas escadas do tribunal, Claro de Nantes, morto por decapitação, Claro de Viena, morto por decapitação, Clemente, morto por afogamento com uma âncora ao pescoço, Crispim e Crispiniano de Soissons, mortos por decapitação, Cristina de Bolsano, morta por tudo quanto se possa fazer com mó, roda, tenazes, flechas e serpentes, Cucufate de Barcelona, morto por esventramento, chegando ao fim da letra C, Deus disse, Para diante é tudo igual, ou quase, são já poucas as variações possíveis, excepto as do pormenor, que, pelo refinamento, levariam muito tempo a explicar, fiquemo-nos por aqui,"

(isto era Saramago a escrever, era Deus a falar, mas José, o Alfredo, atreve-se a introduzir um parágrafo que não existia, consciente do risco de José, o Saramago, o juntar à lista, indiferente aos protestos do Alfredo, que não sabia até onde vai a capacidade de parágrafo de um blog)

"Continua, disse Jesus, e Deus continuou, abreviando no que podia, Donato de Arezzo, decapitado, Elífio de Rampillon, cortaram-lhe a calote craniana, Emérita, queimada, Emílio de Trevi, decapitado, Esmerano de Ratisbona, amarraram-no a uma escada e aí o mataram, Engrácia de Saragoça, decapitada, Erasmo de Gaeta, também chamado Telmo, esticado por um cabrestante, Escubículo, decapitado, Ésquilo da Suécia, lapidado, Estêvão, lapidado, Eufémia da Calcedónia, enterraram-lhe uma espada, Eulália de Mérida, decapitada, Eutrópio de Saintes, cabeça cortada por uma acha-de-armas, Fabião, espada e cardas de ferro, Fé de Agen, degolada, Felicidade e os Sete Filhos, cabeças cortadas à espada, Félix e seu irmão Adaucto, idem, Ferreolo de Besançon, decapitado, Fiel de Sigmaringen, maça eriçada de puas, Filomena, flechas e âncora, Firmin de Pamplona, decapitado, Flávia Domitília, idem, Fortunato de Évora, talvez idem, Frutuoso de Tarragona, queimado, Gaudêncio de França, decapitado, Gelásio, idem mais cardas de ferro, Gengoulph de Borgonha, corno, assassinado pelo amante da mulher, Gerardo Sagredo de Budapeste, lança, Gereão de Colónia, decapitado, Gervásio e Protásio, gémeos, idem, Godeliva de Ghistelles, estrangulada, Goretti Maria, idem, Grato de Aosta, decapitado, Hermenegildo, machado, Hierão, espada, Hipólito, arrastado por um cavalo, Inácio de Azevedo, morto pelos calvinistas, estes não são católicos, Inês de Roma, esventrada, Januário de Nápoles, decapitado depois de ter sido lançado às feras e atirado para dentro de um forno, Joana d'Arc, queimada viva, João de Brito, degolado, João Fisher, decapitado, João Nepomuceno de Praga, afogado,"

(e aqui entraria José, o Alfredo, por reincidência no acrescento de parágrafos, na Lista de Saramago)

"Juan de Prado, apunhalado na cabeça, Júlia de Córsega, cortaram-lhe os seios e depois crucificaram-na, Juliana de Nicomedia, decapitada, Justa e Rufina de Sevilha, uma na roda, outra estrangulada, Justina da Antioquia, queimada com pez a ferver e decapitada, Justo e Pastor, mas não este que aqui temos, de Alcalá de Henares, decapitados,"

(José, o Alfredo, interrompe novamente, desta feita só para esclarecer que o Pastor a quem se alude, "este que aqui temos", é o Diabo)

"Killian de Würzburg, decapitado, Léger d'Autun, idem depois de lhe arrancarem os olhos e a língua, Leocádia de Toledo, fraguada do alto de um rochedo, Liévin de Gand, arrancaram-lhe a língua e decapitaram-no, Longuinhos, decapitado, Lourenço, queimado numa grelha, Ludmila de Praga, estrangulada, Luzia de Siracusa, degolada depois de lhe arrancarem os olhos, Magino de Tarragona, decapitado com uma foice serrilhada, Mamede de Capadócia, estripado, Manuel, Sabel e Ismael, o Manuel com um cravo de ferro espetado em cada lado do peito e um cravo atravessando-lhe a cabeça de ouvido a ouvido, todos degolados, Margarida de Antioquia, tocha e pente de ferro, Mário da Pérsia, espada, amputação das mãos, Martinha de Roma, decapitada, os mártires de Marrocos, Berardo de Cobio, Pedro de Gemianino, Otão, Adjuto e Acúrsio, degolados, os do Japão, vinte e seis crucificados, alanceados e queimados, Maurício de Agaune, espada, Meinrad de Einsiedeln, maça, Menas de Alexandria, espada, Mercúrio da Capadócia, decapitado, Moro Tomás, idem, Nicásio de Reims, idem, Odília de Huy, flechas, Pafnúcio, crucificado, Paio, esquartejado, Pancrácio, decapitado, Pantaleão de Nicomedia, idem, Pátrocles de Troyes e de Soest, idem, Paulo de Tarso, a quem deverás a tua primeira Igreja, idem, Pedro de Rates, espada, Pedro de Verona, cutelo na cabeça e punhal no peito, Perpétua e Felicidade de Cartago, a Felicidade era escrava da Perpétua, escorneadas por uma vaca furiosa, Piat de Tournai, cortaram-lhe o crânio, Policarpo, apunhalado e queimado, Prisca de Roma, comida pelos leões, Processo e Martiniano, a mesma morte, julgo eu, Quintino, pregos na cabeça e outras partes, Quirino de Ruão, crânio cortado em cima, Quitéria de Coimbra, decapitada pelo próprio pai, um horror, Renaud de Dortmund, maço de pedreiro, Reine de Alise, gládio, Restituta de Nápoles, fogueira, Rolando, espada, Romão de Antioquia, língua arrancada, estrangulamento, ainda não estás farto, perguntou Deus a Jesus,"

(e que falta é que faz aqui um ponto de interrogação, pergunta José, o Alfredo, vá-se lá saber a quem)

"e Jesus respondeu, Essa pergunta devias fazê-la a ti próprio, continua, e Deus continuou, Sabiniano de Sens, degolado, Sabino de Assis, lapidado, Saturnino de Toulouse, arrastado por um touro, Sebastião, flechas, Segismundo rei dos Burgúndios, atirado a um poço, Segundo de Ascati, decapitado, Servácio de Tongres e de Maastricht, morto à tamancada, por impossível que pareça, Severo de Barcelona, cravo espetado na cabeça, Sidwel de Exeter, decapitado, Sinforiano de Autun, idem, Sisto, idem, Tarcísio, lapidado, Tecla de Icónio, amputada e queimada, Teodoro, fogueira, Tibúrcio, decapitado, Timóteo de Éfeso, lapidado, Tirso, serrado, Tomás Becket de Cantuária, espada cravada no crânio, Torcato e os Vinte e Sete, mortos pelo general Muça às portas de Guimarães, Tropez de Pisa, decapitado, Urbano, idem, Valéria de Limoges, idem, Valeriano, idem, Venâncio de Camerino, degolado, Vicente de Saragoça, mó e grelha com puas, Virgílio de Trento, outro morto por tamancos, Vital de Ravena, lança, Vítor, decapitado, Vítor de Marselha, degolado, Vitória de Roma, morta depois de ter a língua arrancada, Wilgeforte, ou Liberata, ou Eutrópia, virgem, barbuda, crucificada, e outros, outros, outros, idem, idem, idem, basta."

E o Evangelho continua, mas apesar da insistência de Jesus a lista fica por aqui. E em que é que isto melhoraria com pontos finais e parágrafos, pergunta José, o Alfredo. E prontos, era só isto.

3 comments:

Anonymous said...

Ponto finais, pontos de interrogação, pontos de exclamação, reticências, dois pontos, travessão, aspas e outros que afins, enterrados vivos que estes filhos da puta não fazem cá falta nenhuma, pois não, pergunto-me eu. Ok, ok, abriste-me o apetite, se isso é coisa que se possa ter pelo homem.

José, o Alfredo said...

Ele há os canibais antropófagos, ou pelo menos havia.

Anonymous said...

Brilhante.