"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

22.10.08

Desinfecção científica



Se há género literário que nunca apreciei particularmente (e há até muitos géneros literários que nunca apreciei particularmente, mas deu-me jeito começar assim) é a chamada Ficção Científica. Isso já fez com que alguns livros que acabei por apreciar imenso tenham levado umas quantas décadas a penetrar a couraça da minha indiferença. Só por virem com o malfadado rótulo da Ficção Científica. Preconceitos, que se há-de fazer.

Um desses casos, que agora, dito assim, parece quase tão absurdo como na realidade é, deu-se com o Senhor dos Anéis. Ainda eu estava na tal idade que o Reininho recomenda para a leitura d'A Obra quando dei pela existência d'A Obra. Mas alguém, vá-se lá saber quem e porquê, me disse que aquilo era bestial e que era Ficção Científica. Bestial, escuso de ler, terei eu pensado. Aguardei, pois, que um neozelandês barbudo me mostrasse que não, que aquilo não era Ficção Científica, para poder ler sossegadamente A Obra.

Deu-se-me agora outro desses casos, com o jovem Arthur C. Clarke. Mão amiga ofereceu-me recentemente uma caixinha cheia de DVDs do Kubrick, entre os quais o 2001 Odisseia no Espaço. Para além do filme, o DVD prima por ter extras verdadeiramente bestiais. Nesses extras aparece o jovem Arthur C. Clarke a dizer coisas. Talvez por isso, e certamente por já terem passado mais de cinquenta anos sobre as edições originais, dirigi-me à prateleira respectiva do escritório lá de casa e experimentei um dos Clarkes que lá tenho. Gostei, experimentei outro, não desgostei, estou a experimentar outro, e a gostar, e assim sucessivamente.

Há várias coisas bestiais nisto. Uma é que escuso de gastar dinheiro, até porque quando acabar os que tenho não me vou pôr a comprar Clarkes. Outra é que aquilo deixou de ser Ficção Científica e passou a ser outra coisa qualquer, muito mais próxima de coisas de que eu gosto muito mais, como por exemplo a História. Num registo que só aparentemente é diferente do Senhor dos Anéis, o que Clarke partilhava com o resto da humanidade nos anos 50 não era a costumeira ficção situada em cenários alcunhados de científicos. Tal como Tolkien com a Terra-média, e ao contrário dos escribas menores, o que verdadeiramente interessava a Clarke era o cenário em si.

Tolkien deu-se ao trabalho de criar todo um mundo, que só por acaso não existiu, para que nesse mundo se pudessem ter falado e evoluído as línguas que lhe apetecia inventar; os hobbits, os anões, os elfos, os orcs, os feiticeiros, os entes e o resto da matilha toda são os acessórios indispensáveis à composição desse mundo. É curioso que o mundo que Clarke se deu ao trabalho de partilhar connsoco era e continua a ser perfeitamente possível, porque a sua base, as leis da física, ainda não mudaram substantivamente, mas hoje está muito mais distante do que na altura em que era considerado Ficção Científica.

Por mim, tudo bem. Leio os livritos, aclaro ligeiramente alguns dos imensos buracos negros da minha ignorância das coisas da Física e derivados, fico a saber a que velocidade é que tenho de me pôr a andar se algum dia quiser entrar em órbita, e quanto mais é que preciso de acelerar para chegar a Vénus ou a Marte, o que é tão deliciosamente inútil como saber agradecer em Sindarin ou dizer adeus em Quenya, e com isto fico todo contente.

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9 comments:

CPrice said...

Nobody is perfect dizia alguém :) mas por aqui nem ficção cientifica nem Tolkien (e com esta erradica-me dos comentários eu sei) ;)

Mas .. gostei de ler!

hyvästi! (não é em Quénia mas é parecido)

José, o Alfredo said...

A acreditar na minha internet, hyvästi é finlandês. E não é coincidência que seja parecido com Quenya, o 'latim' das línguas de Tolkien. É que o finlandês, por ser bonito, foi das que mais inspirou o homem.

Quanto a bani-la da caixa, não faz nada o meu género. Como castigo, devia era pô-la a ler o Silmarillion. Em sânscrito.

Namarië.

(Estou evidentemente a chalacear. Mas enfrente esses preconceitos e experimente o Silmarillion - em inglês, bem entendido. Custa-me a crer que não goste, pelo menos, dos primeiros capítulos.)

CPrice said...

".. has uplifted her hands like clouds" .. diz-me algo isto.

:) chalaça e castigo aceites Caro José .. nada como uma "penitência" contra determinado preconceito, logo eu que tenho a mania que sou perfeitamente open-minded.

Anonymous said...

Espero que os avançados do Benfica não andem a ler o mesmo. Ficam sem saber a que velocidade têm de se pôr a andar e talvez por isso entrem em órbita amanhã.

L. Rodrigues said...

Pois eu tive um periodo em que não lia outra coisa. Ali entre os 14 e os 18.

A Argonauta, primeiro, e depois a Europa América, a Caminho azul, menos, eram, por assim dizer, as minhas agências de viagens.

Levaram-me a lugares extraordinários.
Ainda lá vou, de vez em quando.

Por vezes sinto-me como o personagem de Rutger Hauer em Blade Runner:

"I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. … Time to die."

Mas sem a parte de morrer.

José, o Alfredo said...

Também não me ficaria mal, um dia destes, prestar aqui um singelo tributo ao avô Júlio, o Verne. Muito me transportou esse bom homem.

José, o Alfredo said...
This comment has been removed by the author.
José, o Alfredo said...

Cadê o meu caixotinho do lixo?

CPrice said...

(risos)

.. e eu fico sua confessada fã se assim cumprir esse "não me ficaria mal .." ;)

Bom fim-de-semana Caro José.