Para os menos iniciados, vamos por partes até chegarmos à Terra-média (suponho que seja assim que se escreve em Português, pelo menos enquanto não vem o aborto ortográfico e passa a Bilubilu ou coisa que o valha).
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Primeira parte (começando pelo fim, que é sempre o mais apetecido): Valaquenta. Que é lá isso? Dando de barato que até os não-iniciados sabem que J.R.R. Tolkien é o autor d'O Senhor dos Anéis, bastará dizer que Valaquenta é o nome do segundo capítulo de outro livro do mesmo autor (edição póstuma, do filho Christopher), que dá pelo nome de Silmarillion. Em algum não-iniciado insistindo muito, eu terei todo o prazer em discorrer um pouco sobre o Silmarillion, que é o meu Tolkien preferido. Em insistindo um pouco mais, o não-iniciado ganhará um conselho inteiramente grátis: leia o livro (talvez com o cuidado prévio de ler O Senhor dos Anéis antes, só para ganhar um pouco de balanço).
Segunda parte: Eä. Eä? Ai ai ai que isto agora começa a complicar-se, dirá o não-iniciado. Ui ui ui que isto começa a complicar-se deliciosamente, digo eu. Para não ofender demasiadamente os não-não-iniciados com demasiadas explicações óbvias (afinal de contas não queremos ser nenhum Vitorino), bastará dizer que o tal Silmarillion é a modos que uma mitologia da Terra-média, que começa muito no género do Génesis (este Génesis, para os não-letrados-de-todo, é o primeiro livro da Bíblia, sendo que livro é o que se costuma chamar aos capítulos da Bíblia, que por sua vez é um livro ainda mais vendido que O Senhor dos Anéis e que nem sequer é muito pior). Voltando à base: Eä não é mais que o nome que Tolkien dá ao universo, criado por um deus todo-poderoso. Ilúvatar, esse deus, O deus único*, cria o universo, a partir do nada, dizendo a palavra 'Eä!', que se poderá traduzir por 'Seja!' ou 'Sê!'.
Terceira parte: Arda. Para quem chegou até aqui na relativa posse das suas faculdades, esta é fácil. Sendo Eä o Universo, o Todo, Arda é o Mundo, o planeta habitado pelos povos e pelas personagens que os não-completamente-não-iniciados conhecem d'O Senhor dos Anéis. Quando Ilúvatar, por interpostas divindades menores, concebeu este Mundo, Arda, fê-lo para que duas raças que tinha em mente vir a criar, por isso apelidadas os Filhos de Ilúvatar (os Elfos e os Homens), tivessem onde habitar. Simples, não? Suponha o estimado leitor não-iniciado que é um deus todo-poderoso. Suponha também, já agora, que para além de si próprio não existe rigorosamente mais nada nem mais ninguém, pela única e exclusiva razão de que o estimado leitor não-iniciado, talvez não suficientemente compenetrado do seu novo papel de deus todo-poderoso, ainda não criou coisíssima nenhuma. O que é que o estimado leitor não-iniciado faria numa circunstância dessas? Dir-me-á que não sabe. Mas, qual António Vitorino, aposto consigo em como, mais dia menos dia, mais milhão de anos menos milhão de anos, o Estimado (se me permite abreviar assim) acabará inevitavelmente por fazer qualquer coisa, seja o que for. Que sentido faz um Estimado todo-poderoso que tudo pode e nada faz? Sentido nenhum. Ora, em fazendo seja o que for, o Estimado acabou de criar um tudo, por contraposição ao nada que até aí existia (sem desprimor para o Estimado, que para além de todo-poderoso é pré-existente, mas que se nada fizer para todo o sempre ficará, também para todo o sempre, um Estimado completamente anónimo e deslocado, para não lhe chamar inútil e calão, que não são coisas que se chamem a um Estimado). Suponha agora o Estimado, para terminar o parágrafo e passarmos então à Terra-média, que, ao fazer a tal primeira coisa, a que estamos a chamar Tudo por uma questão de simplificação, o Estimado se deixa levar pelo entusiasmo e desata a criar mais isto e mais aquilo. Para além de estar a lançar as raízes mais profundas da expressão 'tudo e mais alguma coisa', o Estimado estará a enriquecer com pormenores o tal universo que criou no início. Basta que, no meio desses pormenores, o Estimado conceda a uma determinada espécie o dom de falar e de criar para que, mais cedo ou mais tarde, essa espécie se ponha a dar nomes às coisas. E, como diria o António Vitorino, aposto que as criaturas irão chamar Universo ou Eä ou coisa do género ao tal Tudo e Arda ou Mundo ou Terra ou Earth ou assim ao cantinho onde o Estimado decidir instalá-las.
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Posto tudo isto, resta apenas saber o essencial: a que diabos vem esta conversa toda sobre a Terra-média e demais tolkienices? Pura e dura mania de ser do contra, estimado. Ontem era Dia da Terra no Google, era Dia da Terra no YouTube, era Dia da Terra em todo o lado. Aguentei-me, malhei um nadinha no Vitorino só para não enferrujar e mantive-me sossegadito em relação ao Dia da Terra, para não ofender ninguém. Mas hoje já não é Dia da Terra, graças ao Estimado (chamemos-lhe assim, pelo menos até ao fim do texto, se o estimado não se importa). A protecção da porcaria do planeta virou religião nos piores sentidos do termo. Entre um fundamentalista islâmico, um fundamentalista cristão, um fundamentalista judeu e um fundamentalista ambiental, venha o Estimado, ou o seu pior inimigo, e escolha. Eu não sou capaz.
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* Ilúvatar é também referenciado como Eru, mas isso é o tipo de coisa que não ajuda a credibilizar A Obra junto dos não-iniciados, tal como o pormenor de que o marido da Galadriel, que acabou por ficar conhecido por Celeborn (se lhe der para ler isto em voz alta é favor pronunciar Kéléborn), nos primeiros rascunhos surgia com o algo duvidoso e muito pouco élfico nome de Teleporno.
4 comments:
já cá tinha vindo Caro José, mesmo não comentando na altura, portanto o seu aviso lá pelas minhas linhas caiu na água (risos) .. não me vou alongar nas consequências dos tais fundamentalismos que refere.
Mas prometo que não mostro à gente pequena lá de casa ;)
Brilhantemente escrito como sempre.
Mesmo em desacordo com o que sinto sobre o tema. :)
Um homem vai a blog e lê uma coisa, vai a outro e lê outra. Assim um homem baralha-se. A Terra não era daquele gajo que foi comido pelo Leão? Vens tu e dizes-me que é do Senhor dos Anéis, levando a crer que é do Estimado. Eu cá acho que o pessoal não está nem aí para a Terra e sim para o salário, as férias, as compras de Natal e por aí adiante. O resto são fundamentalismos que dão pelo nome de cinismos.
Er...Hmmm...Quer dizer, eu... pronto, e a Clare Gorgan, pá, é groink?
Na altura não era nada groink. Agora parece que apresenta não sei o quê na televisão lá das ilhas, mas não tenho visto...
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