"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália
5.12.08
A questão da avaliação
O modelo de avaliação dos professores e a sua aplicação, ou não, é um assunto importante. Longe de mim desvalorizá-lo. Mas levei muito tempo a perceber a verdadeira dimensão do problema. Agora, felizmente, já tenho opinião sobre o assunto. Com a minha opinião formada, já posso encarar com outra confiança o ano eleitoral que se avizinha, pois, se bem tenho entendido os debates sobre a questão, a maioria absoluta do PS depende deste assunto. E isso, obviamente, é muito mais importante do que a Educação.
Claro que a minha opinião é totalmente irresponsável. Mas, atendendo a que não sou professor, nem sindicalista, nem secretário de Estado, nem sequer ministro da Educação, vou aproveitar esta falha de responsabilidades para dizer o que eu acho, antes que outro assunto qualquer se torne mais importante.
Para que não restem dúvidas sobre o meu grau de envolvimento na matéria, devo declarar que, até há umas escassas duas décadas, frequentei escolas (sempre na qualidade de aluno). Terminei esse meu envolvimento pessoal no sistema educativo sob a tutela do ministro Roberto Carneiro, na vigência do XI Governo Constitucional, o primeiro liderado pelo actual Presidente da República. Um governo em que o Dias Loureiro era ministro dos Assuntos Parlamentares, o das Finanças chamava-se Beleza e havia dois Arlindos (dois). Coisas de outros tempos. Pelo que, actualmente, o que me preocupa mais no que toca a Educação é a minha filha.
A minha filha frequenta uma escola. Não fosse isso e, egoísta e interesseiro como sou, numa altura destas os problemas da Educação poderiam passar-me ao lado. Mas ontem a minha filha chamou-me a atenção para o verdadeiro cerne do problema. E o verdadeiro cerne do problema da avaliação dos professores é a avaliação dos alunos. Eu explico.
Ontem a minha filha telefonou-me, logo pela manhã. Não é hábito. Confesso que, quando o telemóvel tocou e vi o nome da miúda no visor, fiquei preocupado. "Lá estão eles em greve outra vez", pensei eu (eles, os professores). "Lá andam eles a vadiar pelas ruas ou pelos shoppings", continuei eu a pensar (eles, os alunos).
Enquanto ia pensando estas coisas, premi o botão verde e atendi a chamada. Afinal as minhas preocupações não tinham razão de ser. Tudo estava muito bem com a minha filha. Era intervalo, daí o telemóvel estar ligado, e estava a ligar-me para me comunicar que tinha acabado de receber a nota de um teste de Francês. A nota seguia o modelo de avaliação conhecido por "percentagem". Alguma modéstia me impede de a afixar aqui em toda a sua extensão, mas a nota acabava em meio por cento.
Dei-lhe os parabéns, como se impunha, e fiquei a pensar naquele meio por cento. E foi assim que, finalmente, lá consegui perceber o que se passa com a avaliação dos professores. Para que não fique a ideia de que a maioria absoluta do PS se vai decidir por causa da nota da minha filha num teste de Francês, vou ilustrar a situação, tal como ontem passei a vê-la, com toda a nitidez, mas com nomes e valores fictícios.
A cena passa-se na sala de professores de uma escola secundária. Três professores discutem animadamente a questão da avaliação dos professores: Daniel, professor de Artes e Técnicas do Fogo, Bruno, de Filosofia, e Sónia, Matemática. Sentada um pouco à parte, Idália, professora de Francês, está a acabar de corrigir um molho de testes.
Daniel: Eu acho que já ganhámos, pá.
Bruno: Achas? Não sei... Isso do ganhar é tão relativo...
Daniel: Estás parvo ou quê? Não vistes a adesão à greve?
Bruno: Claro, a greve foi um sucesso, mas não tenho a certeza...
Daniel: És mas é maluco, pá. Noventa e tal por cento!
Sónia: 95,4. O sindicato diz que foram 95,4%.
Daniel: E tu, Idália? Não dizes nada? Não me digas que estás do lado da gaja?
Idália (ainda a acabar de corrigir os testes): O quê? Desculpem lá, estava distraída. Estou aqui a acabar de classificar uns pontos... Certo... Certo... Incompleto...
Daniel (piscando o olho a Sónia e Bruno): É pá, ó Idália, deixa lá essa porcaria, já acabas isso. Cá para mim tu estás é do lado da gaja. Eh eh eh!
Idália: Errado... O quê? Desculpa lá, mas tenho de acabar isto. Ontem foi greve, não me ia pôr a corrigir pontos, pois não? E hoje à noite temos a manif, não vou ter tempo. Deixa lá acabar isto, está quase. 62%. Mais um. Certo, certo, certo...
Sónia: Estive a fazer as contas ao modelo de avaliação. Sabem uma coisa?
Bruno: Eu sinceramente não sei muito bem se sei fazer essas contas, mas o conceito de base é que me parece...
Daniel: Tretas, pá. Diz lá, Sónia, quanto é que te deu as contas?
Sónia: 38,8%.
Daniel: Porra! Quarenta por cento?
Sónia: 38,8. Nas minhas contas dá 38,8%.
Bruno: Mas olha lá, Sónia, que conta é essa?
Sónia: É o tempo que a aplicação do modelo de avaliação nos ia levar a aplicar se a aplicássemos.
Bruno: O tempo? Mas achas que o problema é o tempo? Eu sinceramente acho que é mais o espaço. Onde é que a malta vai fazer isso? É aqui, na sala de professores?
Idália: Tu levas 58%. Não, 60%. Olha, só falta um. O Zacarias. Certo... Certo, certo, certo... Este miúdo é bestial. Certo. Bem. Muito bem. Certíssimo...
Daniel: A verdadeira questão, pá, é a gaja. A gaja deve de ir embora. E mais nada. Tu, Sónia, fizestes as contas. Quarenta e tal por cento do tempo é para a gente avaliarmos os colegas. É ou não é?
Sónia: 38,8%.
Daniel: Prontos, quarenta por cento. É a mesma coisa. Não há condições. Cem por cento de adesão à greve, pá...
Idália: Certo... certo...
Daniel: Vêem? Até a Idália concorda, pá. A gaja não chega às eleições. É certinho! Olha, está a tocar. Embora lá, malta.
Daniel, Sónia e Bruno saem. Idália, que tem o próximo tempo livre, conclui calmamente a avaliação.
Idália: Certo e certo. Grande Zacarias. Este miúdo é impressionante. 100%, sem dúvida. Não, espera. A composição está bestial mas falta aqui qualquer coisa. 'Je adore mon petit chien...' Falta aqui a mot juste... E porque não 'J'adore'? Já demos as contracções apostrofadas... Levas 99%, Zacarias. Não. Também não é justo. 99,5%. É isso. 99,5%.
Idália arruma o molho de pontos na sua pasta e sai da sala.
Esta foi a cena que o telefonema da minha filha me revelou. Até ontem, eu não imaginava que um professor de Francês já tinha de chegar ao meio ponto percentual. Afastado da Educação como tenho andado, pensava que só os ministros das Finanças e os bancos centrais é que iam a esse ponto. Agora compreendo. Agora dou razão à justa luta dos professores e respectivos sindicatos. Só para avaliarem correctamente os alunos, já para nem falar em ensinar-lhes coisas, as 24 horas do dia não chegam. Vem agora uma gaja, lá porque é ministra, a querer aplicar modelos de avaliação? Era o que faltava.
Agora que vi claramente as coisas como elas são, a minha opinião é que os professores têm toda a razão. Avaliação sim, mas assim é que não.
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1 comment:
Zezito,
Nada como fazer-se-nos 100% de luz no espírito em relação a alguns assuntos.
No nosso tempo, avaliar os professores era muito mais simples. Havia a nariguda (porque tinha um dito exagerado), a abelha maia (porque se atreveu a ir um dia para escola com um fato às riscas amarelas e pretas), o avô cantigas (porque já estava na pré reforma), a bafo de onça (pq tinha mau hálito), etc, etc.
Isto sim era perfeitamente esclarecedor e não deixava margens para dúvidas de meio por cento.
Nada como uma alcunha para posicionar eternamente a imagem de um professor nas mentes dos seus consumidores.
Isto sim é um método científico absolutamente fidedigno.
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