"Pode ser que sim. Pode ser que não. Não posso garantir." - in Astérix, A Volta à Gália

31.10.08

A facilidade matou o Rabin


Este moço (o do meio, o que não está fardado) é Yigal Amir, o extremista (de direita) que matou o primeiro-ministro Isaac Rabin (em 1995, se bem se lembram). Está preso, que é o que acontece a certas pessoas em certos países quando são apanhadas depois de terem feito certas coisas... mas não é isso que interessa agora. O que interessa é que está preso.

Estando preso, o jovem Amir deu uma entrevista via telefone a dois canais de televisão israelitas, na qual explica de onde lhe veio a ideia de matar Rabin. E a história é tão só uma variante da celebérrima ocasião que faz o ladrão.

Amir conta que foi a um casamento onde se encontrava também Rabin. Não pôde evitar reparar que o primeiro-ministro se fazia acompanhar de um único guarda-costas. "Se lhe apertasse a mão podia facilmente dar-lhe um tiro, se quisesse. Eu tinha uma arma comigo. Vi que era tão fácil e disse a mim próprio que passados uns anos me ia arrepender de não o ter matado".

Esta terá sido, então, a inspiração para o acto que veio a cometer pouco tempo depois. Se é tão fácil, por que não? Quanto às motivações mais profundas, os por que sins: à pergunta sobre quem o influenciou na decisão de assassinar Rabin, Amir responde "todos os que entendem as coisas militares. Todos os peritos militares disseram que os Acordos de Oslo foram um desastre". E pronto. Está explicado.

Entre os muitos que se mostraram chocados com a entrevista (a família de Rabin, por exemplo) encontram-se os Serviços Prisionais de Israel. É que Amir não tinha autorização para dar entrevista nenhuma. Ao contrário do que se passava há uns tempos, as chamadas de Amir não estavam a ser 'monitorizadas' (escutadas, portanto) e a entrevista surpreendeu fortemente os responsáveis dos ditos serviços.

Para além da facilidade no uso da pistola, Amir demonstra também ser exímio no manejo do telefone. No passado mês de Agosto, utilizou o telefone da prisão (o mais fixo dos fixos, diria eu) para dirigir ameaças a um vizinho da Sra Amir, no contexto de um desentendimento sobre canos furados.

Quem também se encontra aos cuidados dos referidos serviços prisionais é Hagai Amir, irmão de Yigal. Menos eficaz que Yigal, talvez mais dado às coisas do espírito, Hagai está dentro por mera conspiração para cometer assassínio. E consta que foi levado a sério quando confidenciou a alguns guardas que lhe bastava fazer uma chamada para mandar o primeiro-ministro pelos ares.

Nessa altura, Hagai perdeu aquilo a que se chama os privilégios de telefone. Agora, a mesma medida foi aplicada a Yigal. Um dos canais já anunciou que não vai transmitir a programada segunda parte da entrevista, enquanto o outro mantém a intenção de a divulgar.

Moral da história? Convenhamos que não há.

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27.10.08

2 em 1 (ou mais)

Ganhar por 2 a 1, na mesma jornada em que o comandante perde por 3 a 2 e o rival Sporting empata, não é bom. É óptimo. Mas foi isso mesmo que aconteceu ao Olhanense: 2-1 na Vila das Aves, com o líder Santa Clara a perder em Barcelos por 3-2 e o Sporting da Covilhã a empatar (1-1, em casa, com o Freamunde).

Isto na Liga da Água, porque na Liga da Cerveja foi tudo completamente diferente: o Febóqueluporto perdeu por 3-2 mas foi em casa, o Zborden da Padre Cruz empatou mas foi a zero e o Sport Lisboa e Benfica ganhou por 2-1 mas só alguém manifestamente desrespeitador do bom nome das instituições pode dizer que foi na vila das aves.

E por falar em aves, a jovem Vitória, talvez antecipando o que se ia ver durante os 90 minutos, executou na perfeição uma apertada meia volta sobre a asa direita e saíu pelo caminho mais curto. Sábia Vitória.

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23.10.08

Hear our voices, we entreat

Flight Of The Conchords. Mais uma razão para cantarmos todos, convictamente, God Defend New Zealand.

22.10.08

Desinfecção científica



Se há género literário que nunca apreciei particularmente (e há até muitos géneros literários que nunca apreciei particularmente, mas deu-me jeito começar assim) é a chamada Ficção Científica. Isso já fez com que alguns livros que acabei por apreciar imenso tenham levado umas quantas décadas a penetrar a couraça da minha indiferença. Só por virem com o malfadado rótulo da Ficção Científica. Preconceitos, que se há-de fazer.

Um desses casos, que agora, dito assim, parece quase tão absurdo como na realidade é, deu-se com o Senhor dos Anéis. Ainda eu estava na tal idade que o Reininho recomenda para a leitura d'A Obra quando dei pela existência d'A Obra. Mas alguém, vá-se lá saber quem e porquê, me disse que aquilo era bestial e que era Ficção Científica. Bestial, escuso de ler, terei eu pensado. Aguardei, pois, que um neozelandês barbudo me mostrasse que não, que aquilo não era Ficção Científica, para poder ler sossegadamente A Obra.

Deu-se-me agora outro desses casos, com o jovem Arthur C. Clarke. Mão amiga ofereceu-me recentemente uma caixinha cheia de DVDs do Kubrick, entre os quais o 2001 Odisseia no Espaço. Para além do filme, o DVD prima por ter extras verdadeiramente bestiais. Nesses extras aparece o jovem Arthur C. Clarke a dizer coisas. Talvez por isso, e certamente por já terem passado mais de cinquenta anos sobre as edições originais, dirigi-me à prateleira respectiva do escritório lá de casa e experimentei um dos Clarkes que lá tenho. Gostei, experimentei outro, não desgostei, estou a experimentar outro, e a gostar, e assim sucessivamente.

Há várias coisas bestiais nisto. Uma é que escuso de gastar dinheiro, até porque quando acabar os que tenho não me vou pôr a comprar Clarkes. Outra é que aquilo deixou de ser Ficção Científica e passou a ser outra coisa qualquer, muito mais próxima de coisas de que eu gosto muito mais, como por exemplo a História. Num registo que só aparentemente é diferente do Senhor dos Anéis, o que Clarke partilhava com o resto da humanidade nos anos 50 não era a costumeira ficção situada em cenários alcunhados de científicos. Tal como Tolkien com a Terra-média, e ao contrário dos escribas menores, o que verdadeiramente interessava a Clarke era o cenário em si.

Tolkien deu-se ao trabalho de criar todo um mundo, que só por acaso não existiu, para que nesse mundo se pudessem ter falado e evoluído as línguas que lhe apetecia inventar; os hobbits, os anões, os elfos, os orcs, os feiticeiros, os entes e o resto da matilha toda são os acessórios indispensáveis à composição desse mundo. É curioso que o mundo que Clarke se deu ao trabalho de partilhar connsoco era e continua a ser perfeitamente possível, porque a sua base, as leis da física, ainda não mudaram substantivamente, mas hoje está muito mais distante do que na altura em que era considerado Ficção Científica.

Por mim, tudo bem. Leio os livritos, aclaro ligeiramente alguns dos imensos buracos negros da minha ignorância das coisas da Física e derivados, fico a saber a que velocidade é que tenho de me pôr a andar se algum dia quiser entrar em órbita, e quanto mais é que preciso de acelerar para chegar a Vénus ou a Marte, o que é tão deliciosamente inútil como saber agradecer em Sindarin ou dizer adeus em Quenya, e com isto fico todo contente.

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21.10.08

Nós e os outros

First they came for the Communists but I was not a Communist so I did not speak out;
Then they came for the Socialists and the Trade Unionists but I was not one of them, so I did not speak out;
Then they came for the Jews but I was not Jewish so I did not speak out.
And when they came for me, there was no one left to speak out for me.


Martin Niemoller, 1892-1984

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Amis, filho de Amis


Acabo de ler o meu primeiro Amis filho. Gosto muito do Amis pai. Também não desgostei do Amis filho. Em certos momentos chegou a lembrar-me o velho Damon Runyon, e não sei o que posso dizer de mais elogioso. Mas também me tocou uma campainha de Lobo Antunes mas de quando eu gostava de Lobo Antunes mas agora já não, por isso não sei.

Não desrecomendo a ninguém, antes pelo contrário, a leitura de Yellow Dog, da autoria de Amis, Martin, filho de Amis, Kingsley, mas para mim, na minha opinião, parece-me pessoalmente que vou continuar a preferir o pai. Freud, filho de Jacob, poderia explicar. Mas ninguém garante que explicasse bem ou que alguém entendesse.

Lá pelo meio, há um personagem deliciosamente Runyonesco (creio que dá pelo nome de Tony Eist) e que nos é apresentado como um bandido entre bandidos, um tipo tão intrinsecamente desonesto que comete crimes mesmo nos seus alibis. Do género: Mas como é que eu podia fazer a caixa do Multibanco no Montijo se a essa hora estava a enrolar uma velha na Trofa? No caso da edição que li, valeu a pena ler chegar a páginas 261 para dar com este Tony Eist.

Por falar em nomes, agora vejo que há também neste cão amarelo algo de reminiscente do bom velho Diniz Machado e do seu Molero. Desde Austin, Mister DeLuxe, Peida Gadocha, Descoiso e companhia que não apanhava uma galeria de personagens com nomes tão tão tão: Russia, uma americana; He, uma mulher extremamente oriental; Love, um criado do rei; Car, um ex-futebolista galês caído em desgraça; And, um gajo qualquer; e outros, muitos outros. Exuberante e prodigiosa, a nomenclatura Amisiana filha.

E prontos. Não asso mais carapaus. Leiam, se quiserem, ou não, se não.

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17.10.08

Viagem de Bentley


'The moustache of Adolf Hitler
Could hardly be littler,'
Was a thought that kept recurring
To Field- Marshal Goering.

'No, sir,' said General Sherman,
'I did not enjoy the sermon;
Nor I didn´t git any
Kick outer the litany.'


'Clerihews'
(excerto), de E.C. Bentley

16.10.08

Não, o Paranormal nunca será perdoado


Os desvarios do PREC não acrescentaram virtudes à Outra Senhora. As agruras do pós-guerra nunca trouxeram saudades do Tio Adolfo. O Terror não reabilitou o Absolutismo. Nem mesmo McCain, se fosse eleito, poderia alguma vez causar uma vaga de fundo a pedir o regresso de Bush.

Por muito mal que corram as coisas nesta fase de regresso à normalidade (e é difícil imaginá-las a correr pior) nunca me verão pedir o regresso do Paranormal. Aliás, está por demonstrar que uma boa parte da responsabilidade dos eventos actuais não deva ser directamente assacada ao Paranormal.

Quanto ao próprio Queirós, ser-lhe-emos eternamente gratos por isto.

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15.10.08

Random Reflection

How odd
Of God
To choose
The Jews!


Isto deve-se a W. N. Ewer (Ewer, William Norman, 1885-1976, jornalista, evidentemente britânico, também conhecido por Trilby, pseudónimo). Não sei porquê, apeteceu-me botar isto aqui. E apeteceu-me ilustrar isto com o episódio da luta entre Jacob e o Anjo (sendo que Jacob é o artista posteriormente conhecido como Israel e Anjo é provavelmente um pseudónimo de Deus, neste como noutros episódios). Mas que se lixe. A quadrinha é bem caçada e a imagem é bonita, não é? Isso é que interessa. Ou não, talvez. Mas adiante.

Sendo os judeus um povo a quem se tem acusado de tudo menos de falta de sentido de humor, atribui-se a Leo Rosten a seguinte resposta:

Not odd
of God.
Goyim
annoy 'im.


Para quem não saiba e não esteja para se chatear a ir ver, goyim são os gentios, que é o que nós, os não-judeus, somos, para os judeus.

Num registo de quem leva a coisa mais a sério, há esta outra resposta que a Wikipedia não sabe se há-de atribuir a Cecil Brown ou a Ogden Nash. Eu, que só conheço o segundo, diria que não interessa muito de quem é. Diria também que não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes para deduzir que é de autoria goyim. É assim:

But not so odd
As those who choose
A Jewish God
Yet spurn the Jews.


Tendo chegado ao Ewer e à sua singela Random Reflection por via do meu já citado Modern Humour, an anthology for the sixties, a Wikipedia é que me permitiu dar estes saltinhos até ao Ogden Nash, com cujo me proponho encerrar o posto. Joyce Kilmer (não faço ideia quem cereja e não se me fez o clique de indagar) terá avançado com isto:

I think that I shall never see a poem lovely as a tree.

E vai o velho Ogden:

I think that I shall never see
A billboard lovely as a tree.
Perhaps, unless the billboards fall,
I'll never see a tree at all.


E com esta me fico. Quanto mais não seja até à próxima.

14.10.08

Injecção de pesporrência


Alguém, sem ser este desinfeliz, viu ontem o Prós e Contras? Pois.

De José, o Manuel, não vou falar. Não me apetece. E mesmo que me apetecesse não haveria nada para dizer.

Já os quatro cavaleiros da banca, ali juntinhos, têm que se lhes diga. Claro que não é a Fátima Campos Ferreira que os vai pôr a dizer seja o que for que não lhes apeteça (se bem que o Ulrich esteve lá quase, tamanha era a carga de nervos que a mulher lhe estava a meter; e como eu o compreendo). A postura de Estado, quando não é de enfado, sai-lhes quase com naturalidade. Vamos lá, os quatro, e só com a Nossa Presença vamos dar ao povo um Sinal. Sinal de quê? Da Nossa Presença. Muito bem, malta, é isso. Vamos lá. E lá foram.

Ao contrário de todas e de cada uma das emissões anteriores do Prós e Contras, nesta não se ouviam sequer as moscas na plateia. O realizador de vez em quando mostrava que sim, que havia gente ali, mas não era a maralha do costume. Era gente séria, respeitável e, acima de tudo, respeitadora. Duvido que tenha sido preciso pôr aquela tropa a assinar algum papelinho. Um erguer de sobrancelha e um dilatar de pupila por parte de uma qualquer daquelas eminências seria mais que suficiente para os reduzir a todos ao silêncio.

A Presença dos quatro potentados, amplamente apregoada em todos os canais da RTP, era o que o programa tinha para oferecer. Alguém esperava, sinceramente, que a solenidade e a gravidade da Presença fosse perturbada por gente a fazer perguntas ou a contrapor opiniões? É possível que isso até tenha passado na cabeça de algum elemento mais contumaz da produção. Tenho a nítida sensação de ter visto, entre os escudeiros e lacaios dos quatro potentados, um ou outro director de publicação da área económica. Talvez esses tenham sido obrigados a assinar o papelinho. Ou não. Não posso garantir.

Seja como for, a cerimónia decorreu sem quaisquer imprevistos. A liturgia perfeita. Fátima Campos Ferreira, imune às evidências, consegue convencer-se a si própria de que está a desempenhar o seu papel de espremer até sair sumo. Com isso, consegue provavelmente convencer também uma boa parte da audiência. Pelos vistos as pessoas gostam que as pessoas as convençam de coisas, desde que fique bem claro que elas, as pessoas, não estão lá muito convencidas de coisa nenhuma.

Em termos de pesporrência pura, não houve rival para Santos Ferreira. O homus millennium é assim ou é o Santos Ferreira que é assim? Um pouquinho de cada, provavelmente. Mas numa altura destas? Numa cerimónia daquelas? Não tenho dúvidas de que, em querendo, o Ulrich, o Salgado, mesmo o Faria, serão perfeitamente capazes de produzir níveis invejáveis de pesporrência. Mas ontem acharam, e bem, que os tempos e a cerimónia pediam outra postura.

Resta saber o que é que se passou para o Santos Ferreira ficar tão isolado na sua demonstração de pesporrência. Será por ganhar mais que os outros? Será por ganhar menos que os outros? Será que tiraram todos à sorte e calhou-lhe a ele fazer aquela figura, para dar um pouco mais de credibilidade ao programa? É que a credulidade do povo também há-de ter os seus limites, e estes provavelmente não incluem quatro potentados da banca aparecerem no mesmo dia e à mesma hora sem sinais ostensivos de pesporrência. Ou será uma manobra concertada da restante banca contra o BCP? Há que estar atento.

Mais incómoda ainda do que a pesporrência é a sabujice, quanto mais não seja porque aquela se alimenta desta. Sabujice da RTP, que impinge aquela Presença sob a capa do Prós e Contras (Conversa em Famílias talvez fosse uma designação mais apropriada para aquele formato). Sabujice da maralha-premium que se presta àquele papel de ir encher a plateia sem levantar um dedinho que seja (a não ser, eventualmente, para tirar algum macaco do nariz). Sabujice das audiências, que não dão mostras de se incomodar com estas coisas.

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13.10.08

A minha contribuição para Santa Pristina

No meio dos biliões todos de que tanto se tem falado nos últimos dias, houve 120 milhõezitos que passaram despercebidos. Reunidos algures, os responsáveis europeus por estas coisas decidiram que o Kosovo não ia lá só com o reconhecimento de Portugal. Não. O Kosovo irá muito melhor com 120 milhões de euros de 'ajuda comunitária'.

Desses 120 milhões, quanto é que será a minha parte? Se se dividisse à moda do Porto, pelos 495 milhões dos 27, daria €0,242424 por cabeça. Vinte e quatro cêntimos e pico. Cinquenta paus, vá. Provavelmente será um pouco mais, porque não acredito que os espanhóis, os cipriotas e os outros irresponsáveis todos que ainda não reconheceram o Kosovo também entrem na vaquinha. Aí os meus cinquenta mil réis subiriam para setenta ou oitenta. Claro que também se pode dar o caso de os alemães entrarem com mais do que a parte deles (espero bem que neste caso isso aconteça), o que poderia levar a minha contribuição novamente para os cinquenta paus.

Seja lá quanto for, acho mal. Acho mesmo muito mal. Mal por mal, prefiro doar os meus cinquenta paus a um banco qualquer em apuros do que ao Kosovo.

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9.10.08

Bestandwin


Ontem vi isto nas notícias e não acreditei. Impossível.

Depois lembrei-me: espera aí, eu conheço este sujeito (o vendedor do produto, que aparecia todo contente a explicar tudo). É menino para isto. O impossível passou a não querem lá ver.

Mas então e a entidade reguladora? O Banco de Portugal, numa altura destas, não ia permitir uma coisa destas. Enfim. Quer dizer. Pois. Vieram-me à memória todos os últimos exemplos da actuação (chamemos-lhe assim) do Constâncio. Aí o não querem lá ver virou foda-se, isto é verdade.

Há pessoas que não entendem bem as coisas se ninguém lhas explicar, de preferência com ilustrações, gestos e demonstrações práticas. Tem sido, historicamente, o caso dos defenestrados, dos guilhotinados e dos romanovisados. Quando a populaça atinge um ponto qualquer de saturação, dão-se todo o tipo de incidentes desagradáveis e sangrentos, reprováveis, é certo, mas que têm pelo menos o condão de ninguém mais poder dizer que não está a perceber o que se passa.

Veja-se o caso da wrap party dos moços da AIG. Um beberete de 440 mil dólares, uma semana depois dos 80 biliões do bail out. Se um dos empregados do resort, chamado a servir aquela rapaziada e perturbado por ter a sua reforma e poupanças entregues à AIG, desse mau uso a alguma faca da cozinha, por exemplo, de quem seria a responsabilidade?

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8.10.08

Foi você que falou em irreversibilidade?


"Na sequência de um amplo e diversificado conjunto de contactos prévios (...), foi esta tarde enviada uma carta do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros ao seu homólogo do Kosovo onde se comunica que, com efeitos a partir desta data, o Governo Português reconhece formalmente a República do Kosovo como Estado soberano e independente", diz ao povo e ao mundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Governo da República Portuguesa.

Diz que, feita "uma avaliação metódica da questão", "constatou que as autoridades do Kosovo têm respeitado os compromissos assumidos perante a ONU" e "entende que a evolução dos acontecimentos no Kosovo é globalmente positiva". Presumo que com isto se queira dizer que estamos muito contentes e nos damos por muito satisfeitos por, oito meses depois da declaração de independência, ainda não ter havido guerra da grossa ali naquele sítio tal e qual. A da Geórgia não conta, porque é mais para acolá.

A palavra-chave mais usada ontem pelo ministro Amado (pareceu-me mesmo que era a única, mas pode ser um disparate da minha parte) é a irreversibilidade. Antes do Amado ministro, já tinha vindo o inenarrável Lello preparar o terreno para o triunfo da irreversibilidade. Claro que não há conceito, por mais virtudes que tenha, que resista a ser anunciado por José, o Lello. E este da irreversibilidade está longe de ser virtuoso. Irreversibilidade não é mais e chega a ser bastante menos que a famosa real politik: as coisas são como são e os estados, sendo como são, fazem as coisas que fazem porque as coisas e os estados assim o exigem.

Ao contrário da real politik, que contém uma componente de procura activa de um interesse do estado, a irreversibilidade é um conceito de absoluta passividade, que também poderíamos designar por no politik (ou a política do Maria-vai-com-as-outras, como Santos Pereira bem resume). É a mera constatação de facto. No caso do Kosovo é pior um pouco, porque nem o Zandinga se atreveria a prever o que se vai passar nos Balcãs nos próximos tempos, quanto mais o Lello ou o Amado.

Até ontem, julguei que era a real politik que levava a República Portuguesa a não se precipitar no reconhecimento do Kosovo. Não indo mais longe, o precedente kosovar pode dar verdadeiras arrelias em Espanha. Já deu na Geórgia. E não há razão nenhuma para não dar em Chipre, na Córsega, na Irlanda, na Bélgica, na Macedónia, em Cabinda, na Transilvânia, no Alasca, na Madeira, nos Açores, nas Berlengas ou na Cova da Moura. Por exemplos.

Timor-Leste é a prova (essa sim, mais que provada) de que o princípio da irreversibilidade vale o que vale, para não dizer menos. Se Portugal fez alguma coisa foi não aceitar a anexação/integração como irreversível e, provavelmente com boas doses de real politik, conseguir convencer outros estados das vantagens da não aceitação da irreversibilidade. Foi teimar e teimar e teimar até à reversibilidade total.

Ontem o Amado não estava muito numa de dar explicações, talvez porque não as tenha para dar. Abespinhou-se todo com uns deputados e lá fez à noitinha o grande frete de passar um quarto de hora com a Ana Lourenço. Sem ser a irreversibilidade, só o ouvi falar em timing (conceito para o qual o Lello não nos tinha alertado). O timing era justamente a única coisa que eu pensava que Portugal estava a gerir com real inteligência. Sendo óbvio para toda a gente que a posição de Portugal, em si, não aquece nem arrefece coisíssima nenhuma, havia todo o espaço do mundo para escolher o tempo do anúncio (dando de barato que haja boas razões, das tais da real politik, para que se acabe por chegar ao reconhecimento e consequentemente o timing seja a única verdadeira questão a resolver).

O Lello pode não perceber e o Amado pode não saber explicar, mas o certo é que ontem a República Portuguesa deitou o precioso timing pela janela fora. Durante estes oito meses, ingenuamente, pensei que o timing do anúncio seria cuidadosamente articulado com Espanha, no mínimo, e de forma que não deixasse dúvidas a ninguém (até a Manuela Ferreira Leite entenderia sem necessidade de se deslocar a Belém). Mas não. É que, no meio de tudo o que não disse e em resposta a tudo o que a Ana Lourenço não lhe perguntou, o Amado ministro lá deixou escapar que de toda a pandilha que ainda não tinha "dado este passo" (reconhecer aos kosovares o direito à independência e a festejá-la com bandeiras da Albânia) Portugal é o único país que não tem nenhum problema interno do género e "não quer criar nenhum problema artificial".

Como diria um amigo meu que é lá daquelas bandas: pushy kurats (o meu amigo escreveria isto como deve ser, em cirílico, mas eu não chego a tanto, fico-me por uma transcrição relativamente fonética).

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7.10.08

Noé ou Noddy?

Peço muitas desculpas não sei bem a quem, mas vou ter de fustigar um spot de rádio*. Já não o faço há muito tempo e este tem-me andado atravessado.

Não, não é aquele da ExpoCasa ou lá o que é, que agora até foi promovido à TV, que diz que "tem coisas giras". Não é esse. É um do Jornal de Notícias (a não ser que seja do Diário do Notícias) (ou do Primeiro de Janeiro), que se destina a divulgar uma colecção de histórias bíblicas destinadas às crianças.

O spot segue o tradicional esquema das duas partes (a que também poderíamos chamar o esquema azeite e vinagre). A primeira parte é publicitária, a segunda é informativa e as duas não se misturam. É um esquema que muitas vezes acaba por ser o único possível, por muitas razões (razões em que, para gáudio geral, me vou abster de entrar).

Antes de a desancar um pouco, faça-se à primeira parte do spot a justiça que merece. Cumpre, no mínimo, o papel de chamar a atenção, se não nunca me lembraria daquilo e não poderia agora passar à zurzidela.

O caso não anda longe de um outro que tive oportunidade de escarafunchar aqui. Diga-se desde já que o Jornal Diário de Janeiro não vai tão longe na estupidez como a SalesForForceFourSearch. Aliás, para um ouvinte medianamente desatento e menos picuinhas do que eu, provavelmente até estará bem conseguido. Diga-se também, já agora, como é o spot: a segunda parte, a do azeite informativo, é a que permite recordar nitidamente que o anunciante é o Jornal Diário de Janeiro (a menos que seja o Comércio do Porto ou o Correio da Manhã) e que o anunciado é a colecção de histórias tiradas da Bíblia para dar às criancinhas.

A primeira parte, a do vinagre publicitário, consiste naquilo que se deduz ser o início da história da Arca de Noé, contada por uma voz feminina, doce e maternal como se impõe nas circunstâncias. O que ouvimos da história é qualquer coisa como: "Era uma vez um senhor chamado Noé que adorava animais". Para o tal ouvinte desatento, tudo bem (presumo eu). Para um desinfeliz como eu, incapaz de se ficar apenas pela forma e abstrair do conteúdo, estamos mal.

Ao contrário do caso da SalesForForceFourSearch, aqui o universo bíblico faz sentido. Não é forçado nem é opção, é o próprio produto. E esse é que é o meu problema. Talvez por acaso, talvez por ignorância, talvez por uma conjugação dos dois factores, o certo é que "adorar animais" era das piores coisas que podiam acontecer na história do Noé. O clímax da história é o Dilúvio, um cataclismo desencadeado por um deus que à época se mostrava particularmente empenhado em afirmar-se como O Deus, não como um mas como o único. Quem leia o Génesis na versão não adaptada às criancinhas do século XXI percebe que a concorrência era numerosa e variada. Entre divindades de todo o tipo e feitio, havia uma propensão para adorar animais que irritava solenemente o Senhor. Foi por essas e por outras, justamente, que Deus decidiu partir para o genocídio.

Não sei se esta versão infantil retrata o clímax da história de outra forma, mas o Dilúvio do Génesis não foi o produto de umas alterações climáticas nem uma tempestade tropical de intensidade inusitada. Foi uma demonstração inequívoca e brutal do poder divino, com o intuito original de extinguir a raça humana. Só à última da hora é que Deus decide salvar alguém e escolhe um tipo qualquer que não ande a adorar os animais nem outros pretensos deuses. O escolhido é Noé, claro. Este, por sua vez, limita-se a fazer o que o Senhor lhe manda. A história não é "ai coitadinhos dos animais que vão morrer todos, que desgraça, já sei, vou fazer uma Arca e salvá-los — pensou o Noé". A história é "escuta bem, Noé, que eu não vou dizer isto duas vezes, fazes uma Arca e metes-te lá dentro sossegadinho com a tua senhora e um casal de animais de cada espécie, se não estamos mal contigo — proferiu o Senhor". Por muito que se adapte, por muito que se actualize o estilo, a história é esta e não outra.

Se eu quisesse incutir valores religiosos a alguma criancinha, gostaria que, do Génesis, ela retirasse pelo menos a ideia de que há um e um só Deus, que O temesse e respeitasse porque Ele é capaz de tudo e de mais um par de botas, e que a única forma aceitável de O adorar é em regime de absoluta exclusividade. Para quem não quer introduzir o tema Religião na educação da canalha ou para quem acredita que os tempos mudaram e a canalha de hoje já não deve ser exposta às overdoses de escatologia e cataclismo do Antigo Testamento, há sempre o Noddy.

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* Claro que posso estar aqui a cometer uma enorme injustiça, no caso de o spot estar contaminado exactamente pelo produto. Mas, mesmo nesse caso, a injustiça será mais aparente do que outra coisa. Não me interessa nada de quem é o erro, do anunciador ou do anunciante, interessa-me o erro em si.

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Mutatis mutandis (mais coisa, menos coisa)

Jogar com uns gajos do Porto, marcar por volta da meia hora da primeira parte e mesmo no fim levar o empate. Eis, resumidamente, a história dos dois jogos mais importantes da 5ª jornada.

O da Liga da Cerveja, por ter tido transmissão em canal aberto, fica ao critério de cada um. Eu vou pelos ensinamentos do velho mestre Trapattoni: da maneira que foi, um ponto é melhor que ponto nenhum. Já o da Liga da Água foi dirigido a um target muito mais seleccionado. Não se tendo estado no José Arcanjo, há que fazer fé na imprensa especializada: o Olhanense teve galo, o Boavista teve caga.

Esta é a pequena beleza do futebol (a grande beleza do futebol é quando o Benfica e o Olhanense ganham, naturalmente): histórias que se resumem nas mesmas palavras podem ser tão diferentes como a cerveja e a água.

2.10.08

Ver ou não ver


Diz no Público que a adaptação ao cinema do Ensaio sobre a Cegueira, de José, o Saramago, está a causar polémica entre os invisuais norte-americanos. Marc Maurer, presidente da respectiva Federação Nacional, entende que a cegueira "não é uma alegoria muito inteligente para falar sobre o colapso da sociedade". Deduzo que não tenha adiantado qual a alegoria inteligente para o fazer (a paralisia, a impotência ou qualquer outra que ocorra também iriam certamente desagradar a alguma Federação análoga).

"O filme retrata as pessoas cegas como monstros e isso é mentira", conclui Marc Maurer enquanto vai preparando um protesto em regra contra o filme. O Público não esclarece sobre a natureza de tal protesto, mas acredito que passe, no mínimo, por conseguir que os invisuais não vejam o filme. Antevejo uma enorme taxa de adesão. Não sei se existe alguma versão inglesa e em braille do Ensaio, mas creio que não seria descabido que Marc Maurer tivesse uma, para poder não a ler.

Claro que Marc Maurer pode ser apenas um instrumento da campanha republicana, destinado a fazer brilhar a senhora Palin. Ou alguém contratado pelo próprio Saramago, só para comprovar a estupidez dos americanos e (alegoricamente) mostrá-la como inerente ao capitalismo. Sabe-se lá.

(Blindness, de Fernando Meirelles, estreia amanhã nos Estados Unidos. Ou não. A ver vamos.)

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Nojo


Finalmente tenho aquilo que muita gente tem no mundo dos afectos futebolísticos. Já tinha, de pequenino, o meu clube adorado. Fui coleccionando muitos outros de estimação, entre os quais um muito especial. Estou a falar, obviamente, do Benfica, do Olhanense e de uma data deles que me são simpáticos.

Claro que também vai havendo uns que não agradam particularmente, como o Febolquelupârto ou o Zbordn. Mas nem desses posso dizer que odeio ou que detesto. Não é verdade. Lamento muito mas não tenho nada de visceralmente contra o Febolquelupârto (não tenho vergonha nenhuma de recordar que até fiquei todo contente quando ganharam a Taça dos Campeões em 87 e também achei uma certa piada quando voltaram a ganhar agora com o Mourinho), e muito menos contra o Zbordn, (a sério, por vezes até chego a achar alguma piada ao Zbordn).

Ocasionalmente, há um ou outro clube que me desagrada durante um tempito, mas depois aquilo passa. Por uma razão ou por outra, foi o caso do Anderlecht, de quase tudo o que é clube italiano, da França, da Grécia, etc. Mas nada que me chegue a revolver as entranhas. Até ontem. Ontem, finalmente, um desses pequenos ódios de estimação desceu definitivamente à categoria de nojo profundo. Finalmente tenho um clube que vou odiar incondicionalmente para o resto da vida. Estou a falar do Barcelona.

Nunca gostei particularmente do Barcelona. Com tantos jogadores fenomenais que tem tido, chegou a haver uma altura ou outra em que até gostava de os ver jogar. Mas o clube, em si, nunca apreciei particularmente. Tudo começa, como em qualquer história, pelo princípio. E o princípio é o verbo, a palavra, o nome. Barcelona. Experimentem dizer isso três vezes seguidas. A única palavra acabada em ona que se pode usar com elegância, num contexto futebolístico, é Maradona. E eles tiveram-no lá. Só que devoram vedetas a um ritmo tal que o Maradona é mais um. Se se quer ver o que é adorar o homem como ele merece tem que se ir a Nápoles (ou à Argentina, naturalmente). Quando se diz Barcelona activam-se as mesmas partes do cérebro e do estômago que se usam para dizer badalhoca e matrafona (e por aqui me fico).

Depois há a questão das cores do equipamento. A conjugação daquele azul e daquele grená, se é que é assim que chamam àquilo, é de uma infelicidade notável. Outras combinações absurdas, como o azul e preto do Inter, chegam a parecer alegres por comparação com aquele empastelamento. Que me lembre, só há mais uma situação em que uma pessoa se depara com uma combinação de cores parecida: é nos sinais de proibição de estacionamento. O que, naturalmente, não traz associações positivas.

Os adeptos é o que se sabe. Uns cagons da pior espécie. Nos jogos fora só pelas cores se conseguiriam distinguir dos do Marítimo ou do Paços de Ferreira, nunca pelo aspecto quantitativo. Se o Desportivo de Chaves vier jogar à Luz o efeito nas bancadas é rigorosamente o mesmo, em termos cromáticos. Nos jogos em casa, onde se juntam mais de 100 mil de cada vez, conseguem o feito verdadeiramente único de impedir que equipas com vários dos melhores jogadores do mundo sejam campeãs de qualquer coisa, o que seria óptimo (para eles) se essas equipas não fossem justamente as deles.

Tudo isto sempre me desagradou no Badalhoca. Os penáltis também. Não há jogo daquela gente em que não se invente pelo menos um penálti a favor e/ou anule um contra. A única comparação possível, nesse aspecto, é com o Brasil. Até contra o pobre do Zbordn inventaram um penálti, não fossem os cento e vinte mil enervar as estrelas todas ao ponto de não conseguirem passar do 1-0 e sujeitarem-se a algum golo do Zbordn, como veio a acontecer.

Os últimos acontecimentos foram a gota d'aigua, a pena a mais que fez quebrar a espinha dorsal do camelo. O triste episódio dos boixos nois não teria sido mais triste do que qualquer outro que envolva os retardados mentais das claques de qualquer clube, não fosse o papel a que se deram os próprios jogadores. Um asco. Ontem, com aquela do não devolver a bola ao Shakhtar e aproveitar para empatar, pude confirmar aquilo de que já suspeitava: o Badalhoca mete-me nojo.

A partir de hoje posso viver o futebol na sua plenitude, tirando de todo e qualquer momento menos feliz do Badalhoca o mesmo prazer que tiro de um bom resultado do Benfica.

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